As cidades, logo após o anúncio das medidas de isolamento físico, esvaziaram-se por completo. Assombradas pela ameaça do COVID-19, converteram-se em uma vastidão de estruturas desprovidas de alma e um silêncio ensurdecedor ocupou os caminhos do presente e, deste, para o futuro.

Recebi a notícia em uma pequena cidade ao sul da França, Sallèles d’Aude, onde está ancorado o pequeno barco de meu noivo, uma penichette jeanneau e aqui fiquei. Estar em uma pequena cidade, nesse momento, permitiu-me alguma segurança (física e material), além da tranquilidade para observar, analisar e refletir sobre diferentes questões concernentes à vida social, tempo livre, lazer, turismo e vida política, temas centrais na pesquisa de pós-doutorado que venho desenvolvendo neste ano, aqui na França. Tornou-se um exercício para o trabalho de campo que está por vir, em Lyon.
Após três semanas de isolamento físico e duas semanas consecutivas de dias ensolarados, arriscando um exercício etnográfico – inclusive reconhecendo e mapeando os riscos da autoantropologia, apontadas por Stratern (2014) -, percebo a retomada do fluxo de veículos e o aumento do número de pessoas transitando nas ruas (especialmente pequenos grupos familiares, sobretudo com crianças) e nos caminhos/trilhas existentes em meio aos espaços rurais. Os prazeres acarretados pelo corpo em movimento (caminhadas, corridas, percursos de bicicleta), associado à fruição disfarçada de alguns poucos espaços da cidade (com ou sem animais de estimação) e da ampliação dos espaços físicos para a socialização do núcleo familiar, parecem ser os motivos imperativos para as breves saídas das residências, além, é claro, das idas ao mercado, padaria, drogaria e ao tabac. Noto que, pouco a pouco, os grupos são ligeiramente maiores, reunem não apenas familiares, mas a quantidade de pessoas que circula pelas ruas, ainda é diminuta.

Esse resultado não se faz sem a vigilante atuação da policia, que inquire cidadãos a respeito do porte do formulário oficial “Attestation de Déplacement Dérogatoire”. Os cidadãos, por sua vez, buscando evitar esse possível encontro, embrenham-se pelas ruas pouco movimentadas, pelos caminhos rurais, longe de grandes vias de circulação – mais facilmente vigiadas. Circulam, em maior número – e isso não quer dizer que sejam muitos – mais ao fim da tarde; suspeito que em razão da menor vigilância neste período dia, em comparação com o período da manhã e início da tarde. E só posso afirmar que suspeito, tendo em vista a impossibilidade de conversar com as pessoas com as quais encontro pelos caminhos. Mesmo se tentasse estabelecer diálogos, seriam difíceis, pontuais, dada a hesitação que manifestam nos encontros casuais por outros passantes. O distanciamento deliberado daqueles que compartilham o caminho, a aceleração dos passos, um aceno em cumprimento – ao invés da costumeira saudação “bonjour”/“bonsoir » – ou ainda, a mudança repentina do caminho e de percurso, me fazem refletir a respeito de uma insegurança pessoal face à situação de aumento dos contágios, bem como, para além do respeito à normativa oficial de isolamento, uma reticência ou desejo de passar despercebido. A aproximação do verão, com dias cada vez mais longos, é convidativa para atividades ao ar livre em horários mais tardios e, na atual circunstância, com a ausência da obrigação de « ir para o trabalho” (isolamento no espaço privado residencial e em tese, maior liberdade na gestão do tempo), parece ser também mobilizada como estratégia para evitar se deparar com a vigilância policial – evita-se não apenas uma multa, como também o aborrecimento de elaborar, de supetão, escusas criativas e pouco convincentes. Os cuidados de distanciamento físico, contudo, são visíveis; distancias entre os grupos são consciente e deliberadamente mantidas. Já em outro contexto de atividades “essenciais » permitidas, estão os percursos realizados para compras no supermercado; faço-os em bicicleta, em média duas vezes por semana e, quase integralmente, sem a presença de outros moradores da cidade (os encontros são escassos e as pessoas passam ao largo).
Faço compras em dois mercados distintos, a depender dos itens que desejo adquirir e estes mercados, de portes diferentes, estão localizados em duas cidades distintas. O mercado da cidade em que estou tem restrição de pessoas no interior da loja – no máximo seis pessoas por vez – e um profissional da área da segurança controla o fluxo de entradas e saídas, por portas distintas; quase sempre há uma pequena fila na porta e pouquíssimas pessoas – há sempre pessoas com máscaras e luvas, mas há também pessoas sem esses materiais e que improvisam mascaras com cachecóis e, ainda, há pessoas sem máscaras e luvas – algumas pessoas independentemente do tipo de “proteção » usada, ensaiam uma conversa rápida entre si e/ou com funcionários da loja.

á o outro mercado, maior, localizado há aproximadamente 12 km da cidade em que estou, não tem trabalhado com esses sistemas de controle; está sempre com um fluxo pequeno de pessoas no interior da loja (com os mesmos tipos de proteção ou mesmo sem estes materiais – o que é o meu caso), pouca interação entre consumidores e funcionários, estacionamento praticamente vazio. É na frente da boulangerie, da drogaria ou do tabac, geralmente com pequenas filas de espera para atendimento – dado que apenas uma pessoa por vez entra na loja -, que as conversas e a interação entre habitantes acontecem com mais frequência; são também diminutas e rápidas conversas, a respeito do horário de funcionamento, do coronavírus e em um único momento, especulações sobre a temporada de turismo de 2020. Entretanto, como esses residentes conhecem uns aos outros e conhecem os funcionários/proprietários da loja, os atendimentos são um pouco mais demorados e os tempos de espera na fila alongam-se ligeiramente.

Fica evidente o reforço ao círculo de socialização primária (espaço da ética privada e da virtude), assim como o peso que a ausência de uso do espaço urbano (e, portanto, o espaço da política) tem, no cotidiano (CHAUÍ, 2004; REMY, ). As novas tecnologias de informação e comunicação tem sustentado boa parte das práticas de socialização secundária, neste período de isolamento, reafirmando o contemporâneo processo de transformação da esfera pública, iniciado há aproximadamente quadro décadas. Os espaços de natureza pública, fisicamente construídos, não contribuem exclusivamente enquanto ambiente socialmente edificado, para a conformação da opinião e da esfera pública, como lembram Siqueira e Ferreira (2015). As novas tecnologias de informação e comunicação, viabilizaram novos espaços de intercâmbio e convivência social, diversificaram os sujeitos, os olhares e as vozes acerca das realidades e cidades, ampliando a noção de espaço público (com a consequente perda da centralidade da imprensa, do rádio e da TV na mediação do espaço publico). Novas formas de participação cidadã, novas e mais rápidas redes de solidariedade e de ação coletiva, mobilizam-se face às mudanças na agenda de intercâmbios sociais (nos temas, nos objetivos de fala e na lógica de funcionamento), gerando novos espaços de produção da opinião pública. A proximidade entre narrador e interlocutor, entre proponentes e colaboradores, possibilita resposta mais rápida e rearticulação das redes de parcerias; apesar disto, permanecem no conjunto midiático (imprensa, rádio e TV) e nas novas tecnologias de informação e comunicação, a fragmentação do discurso e a redução da complexidade tanto da realidade quanto da cidade e do sentido global da vida cidadã, com a respectiva manutenção da proeminente participação do poder privado na esfera pública virtual (CANCLINI, 2002; VERNIK, 1996; Nascimento, 2002; SIQUEIRA, FERREIRA, 2002).
Do perto ao distante…
A cidade constitui o lócus de diversas e imprevisíveis experimentações práticas das sociabilidades; é historicamente, o embrião da “res-pública”, do campo da política, do exercício da lógica das relações de força pautadas pelas leis, das aprendizagens cotidianas face às tensões e conflitos inerentes, sobretudo, à liberdade, às finalidades humanas e à diversidade (CHAUÍ, 2004). Das interações no espaço privado, no espaço público e especialmente, entre estes espaços, advém possibilidades de delineamento da qualidade das decisões, das instituições, da justiça, da lei e dos direitos que, ao fim e ao cabo, norteiam o exercício da liberdade “como o poder de criar o possível”, no quadro da relação entre ética (princípios e valores) e política (tratamento não violento dos conflitos), bem como do que é definido, por meio da isegoria, como isonômico e justo nos direitos sociais, cotidianamente pactuados. Como a partir da manutenção das “atividades essenciais” e das redes de sociabilidades secundárias desenhadas no isolamento, as análises do contexto contemporâneo tomarão parte e/ou estruturarão o olhar, as práticas e as decisões dos sujeitos, após o isolamento?
Em meio à crise, a fortaleza do Estado e sua capacidade de uso da força; a dependência que mercados têm do Estado; a enorme diversidade de dados (boa parte com atualizações quase em tempo real) e as incertezas em relação aos dados oficiais; a capacidade da economia reinventar-se e de redesenhar suas dinâmicas, bem como suas limitações diante das finalidades sociais (em razão da proeminência do valores privados na economia), colocam-se como permanências visíveis. É possível também reconhecer que, o futuro, fazemos todos, por meio de interações e intercâmbios interdependentes e desiguais, dada a implicação dos sujeitos na vida social, cultural, econômica e política das cidades. Por fim, parece que a única constante universal, que não é passível de mudança e, portanto, estático em nosso universo, é a velocidade da luz no vácuo…
Referências
CANCLINI, N. G. 2002. Cidades e cidadãos imaginados pelos meios de comunicação. Opinião Pública, Campinas, v. VIII, n. 1, p. 40-53. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/op/v8n1/14873.pdf>. Acesso em: 08 avril 2020.
CHAUÍ, M. 2006. Simulacro e poder – Uma análise da mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.
CHAUÍ, M. 2008. Culture et démocratie. Revista latino-americana de Ciencias Sociales, ano 1, n. 1, jun. 2018, Buenos Aires: CLACSO.
DARMON, Muriel.2016. La socialisation. France: Armand Colin.
FREITAS, J. S. DE; MAMEDE, J.; LIMA, M. D. 2002. Espaço de fluxos em projetos de ciber-cidades. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/mamede-jose-freitas-lima-cibercidades.pdf>. Acesso em: 09 avril 2020.
NASCIMENTO, S. 2002. Mediaticamente Homem Público: sobre a dimensão electrónica dos espaços públicos. Disponível em: <https://labcom-ifp.ubi.pt/ficheiros/20110829-correia_fidalgo_serra_ico3_mundo_cidadania.pdf#page=121>. Acesso em: 09 avril 2020.
SIQUEIRA, M. P. S; FERREIRA, G. L. 2015. The place of opinion. The city and the spaces for social production of public opinion. Cad. Metrop., São Paulo, v. 17, n. 33, mai, p. 225-242.
STRATHERN, A. M. 2014. L’effet ethnographique et les autres essais. São Paulo: Cosac Naif, 2014.
VERNIK, E. 1996. Comunidades cercadas: la exclusión urbana en la televisión y en la vida. Disponível em: <https://perfilesla.flacso.edu.mx/index.php/perfilesla/article/view/414>. Acesso em: 08 avril 2020.