Versão em português da Enquête thématique n˚ 4 – “Ajustamentos”, Maria Helena, Brasil/França

Os contatos aqui no Porto em Sallèles d’Aude são ocasionais, permeiam deslocamentos para atividades ordinárias do cotidiano (remoção de lixo das embarcações, compras, atividade física, uso de sanitários coletivos e lavanderia). Quando acontecem os encontros, os assuntos são característicos de encontros de vizinhos: cumprimentos, perguntas relacionadas ao estado (inclusive de saúde) de cada um, o clima, uma ou outra reclamação relativa a situação de isolamento. Os encontros são escassos, as conversas mais ainda. Mas, à medida em que os vínculos entre os habitantes se fortalecem, as conversas estendem-se um pouco mais, mantendo sempre a distância de segurança indicada pelas autoridades governamentais e de saúde. O respeito às regras de isolamento e condutas mais duras começaram, mesmo, na segunda semana da restrição oficial de circulação. Até o momento, duas situações distintas ocorridas marcam limites de sociabilidade.

Ameaças do SARS-COV2: um estresse que adoece

Ao fim da primeira semana de tentativas de isolamento vivemos um final de semana ensolarado, com temperaturas mais elevadas (após semanas de baixas temperaturas, chuvas e fortes ventos em períodos isolados). Em face das ótimas condições climáticas, parte dos habitantes do porto – sobretudo àqueles envolvidos com manutenção de embarcações – decidiram realizar uma confraternização, com música em som elevado, bebida alcoólica e outros elementos que caracterizam um momento festivo, de fruição da liberdade. À confraternização sucedeu-se um tremendo desentendimento, entre parte daqueles envolvidos na confraternização e outra pessoa que habita o porto, que não participou do encontro. Esta pessoa, alarmada com as notícias das crises ocasionadas pelo coronavirus, ficou desolada com a inconsciência e julgou a decisão da celebração  como inconsequente, afinal, o grupo havia acercado-se de seu barco (parece que a uma distância inferior à recomendada), tarde da noite, extendendo a celebração em petit comité. O desfecho não seria outro; repreendeu-os veementemente e, após o desentendimento, todos os envolvidos passaram-se três semanas de relações completamente cortadas, sem nem mesmo curtas saudações. As ameaças do SARS-COV2 levaram ao adoecimento – mental e físico -, em graus distintos, esses vizinhos (febre, dores no corpo, tosse, mau humor….); nenhum deles fez teste para investigar a presença do vírus em seu organismo (por indisponibilidade do teste), mas um destes esteve sob acompanhamento médico por uma semana. Após o primeiro dia de acompanhamento médico, o quadro de saúde melhorou progressivamente e quase duas semanas após o ocorrido, pouco a pouco, esta pessoa vizinha foi retomando caminhadas diárias (mesmo em dias chuvosos, debaixo de gotejar leve, mas persistente), ensaiando breves conversas com os demais. Os desentendimentos foram gradativamente apaziguados, mas as relações entre estes mantiveram-se distanciadas. Ao que parece, ter contato com uma equipe técnica de suporte na área da saúde e nesta reconhecer uma rede de suporte, foi motivo de alívio do estresse, das tensões da ameaça e a base para um primeiro movimento pessoal de ajustamento. 

De nossa parte, face ao visível adoecimento desta pessoa que reside em barco vizinho, mantivemos contatos praticamente diários, respeitando as regras de distanciamento físico estabelecidas e rigidamente cobradas pelo vizinho, que tudo esterilizava e não deixava ninguém aproximar-se de seu cachorro de estimação. Nossa tentativa de demonstrar a existência de uma rede de apoio e de ocupar sua mente com assuntos e temas que propiciassem uma distância do COVID-19, parecia um empreendimento fracassado, pois a discussão central, das breves conversas, girava entorno do coronavírus. Contudo, após o incidente de queda de uma árvore sobre um dos barcos do porto, tudo mudou; essa pessoa vizinha dispôs-se a ajudar na remoção da árvore – já que possuía os equipamentos necessários para tal serviço -, foi inserida nesse trabalho e, após dois dias de execução das atividades laborais, retomou a autonomia na gestão de seu cotidiano (um mês e uma semana após a implementação da norma oficial de isolamento – 16 de março de 2020). O que era ameaça tornou-se uma experiência conhecida e superável.

Amizade tecendo táticas e estratégias

Com a escalada da pandemia, os contatos tornaram-se cada vez mais diminutos, mas é fato que, para seres sociais como somos, as conversas e mensagens pelas ondas da internet, mesmo com o suporte do vídeo e dos encontros em tempo real, com o passar do tempo, parecem insuficientes. Em pari passu, a obediência rigorosa às regras do isolamento, por cada um, e um quadro de saúde estável por parte de cada um dos sujeitos que mencionarei, ofereceu alguma tranquilidade para o desenho de táticas e estratégias objetivando algum contato social presencial, entre amigos com alto grau de estima e confiança. É o caso de meu noivo e um grande amigo, que vive em uma cidade próxima. 

No primeiro dia do “isolamento”, antes do aumento do rigor na vigilância policial, almoçamos juntos – eu, meu noivo, esse amigo e sua esposa – na casa desse querido casal de amigos; os 11 quilômetros que No primeiro dia do “isolamento”, antes do aumento do rigor na vigilância policial, almoçamos juntos – eu, meu noivo, esse amigo e sua esposa – na casa desse querido casal de amigos; os 11 quilômetros que nos separam foram percorridos de bicicleta, com o documento “Attestation de Déplacement Dérogatoire” nos bolsos. Do percurso de volta, participamos os quatro; uma parte do caminho se faz por estradas rurais – sem vigilância e sem grandes ameaças; nestes espaços estão aqueles que talvez não desejem ser surpreendidos por policiamento. Já no trecho urbano, apesar de não sermos surpreendidos por vigilância oficial, uma pessoa conduzindo um veículo nos repreendeu veemente, mesmo vendo que estávamos, os quatro, mantendo a distância de segurança recomendada. O controle social informal e pessoal, por um habitante da pequena cidade, explicita um exemplo da questão da arregimentação tratada por Goffman (2015), da “supervisão » do respeito às regras ligadas a uma obrigação de executar, em uníssono com outros indivíduos/grupos, uma atividade atualmente regulada – as mobilidades em vias públicas. Neste caso, o controle social recai em vigilância sobre uma ou mais necessidades “essenciais” de outrem, em graus variados vinculadas à conformação do sentido do eu, da autonomia característica da vida adulta, do respeito à manutenção de um ritmo pessoal de organização de atividades, bem como da realização de ajustes entre estas atividades.

Uma das diferentes tarefas inadiáveis
Fonte: arquivo pessoal da autora – abr. 2020.

Na segunda e terceira semanas, as conversas foram mantidas por WhatsApp, mas na quarta semana de isolamento, um encontro breve entre os amigos foi arquitetado. O noivo propunha enredos que justificassem o deslocamento dele ou de seu amigo; já seu amigo, desconstruía todas as propostas, recordando as restrições para circulação que invalidavam cada uma das sugestões; ambos ponderavam a respeito da necessidade de encontrar uma solução para o “causo”, que não ferisse seus valores, suas ideias e as normas com as quais pactuam. Ambos também reconheciam que os contatos virtuais eram insuficientes; seus laços e sua relação de amizade pressupunha também outras modalidades de interações costumeiras. Passados quase dez minutos de conversa e convencidos de que não apenas o encontro seria importante, como também essa meninice valia a pena. Ambos definiram um plano e, no dia seguinte, o amigo (sem sua esposa) deixa o lar, seguro, aventurando-se em socorro do marinheiro que, em situação de emergência e sem veículo automotor privado, “precisava » repor o estoque de água potável em seu barco. Essa era uma justificativa inquestionável para a traquinagem dos dois garotos seniores, escolados em travessuras e em superação de riscos: um velejador, com histórico de duas voltas ao mundo e o outro, piloto de side car, convertido em velejador por influência do amigo. Ajustadas as variáveis que garantiriam o respeito à moral, aos valores, ideias, normas e acordos tanto formados quanto pactuados ao longo de uma vida, assim como, vencida a barreira da obediência irrestrita aos limites oficiais impostos às relações sociais – em face da constatação de que ambos estavam em perfeito estado de saúde e seguindo à risca as regras do isolamento -, o grande encontro aconteceu, no porto, já com as táticas e estratégias definidas para o próximo encontro, duas semanas depois. O novo motivo? Abastecimento de gás! Após o segundo encontro, os encontros passaram a ser definidos semanalmente, com base na agenda de afazeres de cada um: ora encontravam-se no mercado – ambos precisam fazer compras – ora realizavam alguma tarefa inadiável juntos, sempre respeitando as diferentes regras de encontros sociais estabelecidas durante a pandemia. São amigos muito próximos e enquanto escrevo este texto, arquitetam o encontro da semana: farão uma pequena filmagem juntos, que será publicada em um blog para velejadores, explicando como é possível calcular a hora usando o sol. 

A autonomia e a liberdade que caraterizam a vida adulta manifesta-se, de acordo com Goffman (2015), em um quadro no qual a maioria das pessoas já incorporou padrões socialmente aceitáveis, para a realização da maioria das atividades. Interações e relações concretizam-se em meio ao desenrolar de processos psicobiológicos e cognitivos, bem como mediante diversos movimentos de ajustamento – sobretudo do eu civil -, apreendidos formal e informalmente. As tensões vividas por ambos os amigos estimularam o delineamento de táticas de adaptação implementadas em um sistema de “ajustamentos secundários”, ou seja, de práticas que não desafiam diretamente, neste caso, as normas vigentes, mas que permitem aos sujeitos a obtenção de satisfações “proibidas” ou ainda, que obtenham, por meios proibidos, satisfações socialmente permitidas. Tais práticas conferem aos sujeitos a prova de que são autônomos, que mantém certo controle de seu ambiente de vida e do « território do eu” – “do abrigo individual […] em que a alma parece estar alojada” (GOFFMAN, 2015, p. 54).

Referências

GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 2015.

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