Conheço o Porto em que estou neste período de pandemia há pouco mais de um ano. O perfil dos residentes deste pequeno “mundo de sentido comum” é bastante diverso, estruturado em torno da “vida à bordo”. A heterogeneidade das nacionalidades destes residentes imprimem um caráter multicultural neste espaço, que também é, simultaneamente, um lugar de vida, de trabalho e de lazer. Habita-se na margem do Canal do Midi e, simultaneamente, na margem da cidade; vive-se territorialmente na fronteira da cidade com o campo, mas também na fronteira entre uma vida profissional ativa e uma vida de fruição ativa da aposentadoria; uma vida de liminaridade em que se usufrui das facilidades e prazeres oferecidos pelo ambiente e infraestrutura urbana, assim como àqueles circunscritos ao campo e à náutica. Busca-se aproveitar, livremente, o melhor dos três mundos (ou, talvez, fugir do que há de pior em cada um destes ambientes) e experimenta-se tanto um processo de identificação quanto de socialização particular. Neste pequeno “mundo de sentido comum”, a possibilidade de livre organização da vida e de seus ritmos parece corrente, em um cotidiano frequentemente pautado pela tranquilidade; as pessoas caminham vagarosamente, raramente alguém passa apressado. Isto não implica assumir que as decisões aqui sejam tomadas no mesmo ritmo – de repente, um novo plano, desabrochado quase que por inspiração, por uma vontade que do interior do ser, anima-o, determina os projetos do dia, interrompendo ou não planos previamente definidos.
Praticamente todos os residentes deste Porto, antes de transferirem sua morada para uma casa flutuante, passaram a maior parte do tempo de suas vidas em áreas urbanas. De seu período de residência no Porto, observo que vivem a maior parte do tempo de suas vidas no interior dos barcos. O processo de individuação voltada ao delineamento de uma nova identidade – por exemplo, de tripulante, ou navegador, ou velejador, ou de vida à bordo – aqui, desenrola-se em estreita relação com uma distância social, longos períodos de isolamento no interior das embarcações. Este lugar, com vínculos e redes de interações sociais enfraquecidas, a despeito de seu caráter multicultural, é locus para esparsas situações de reflexão postas pelas relações de alteridade que ali acontecem. A estabilidade material resultante de uma vida de trabalho caracteriza o perfil da maior parte dos residentes do Porto; um grupo composto por senhores e senhoras aposentadas (um baterista, um ex-militar, um ex-empresário do setor de comunicações, um marceneiro e quatro senhoras aposentadas). Já um outro grupo de residentes é composto por adultos que possuem ocupações variadas: dois adultos envolvidos com trabalhos vinculados à náutica, um adulto que trabalha com atividades de manutenção de alto risco, um jovem adulto que trabalha com delivery de alimentos e bebidas para aplicativos, um adulto marinheiro que executa serviços gerais e eu, professora e pesquisadora. Essa estabilidade franqueou a busca por um tipo diferencial de autonomia e de independência na vida à bordo; contudo, neste contexto particular de vida no Porto em Sallèles d’Aude, de tempos em tempos, tanto a autonomia quanto a liberdade são abaladas por uma questão bastante ordinária: a ruptura no fornecimento de energia elétrica da rede externa para o interior dos barcos. A situação que mais nos colocou em contato, no período do inverno, foi também a que mais nos distanciou.

Fonte: Elaboração própria (maio 2020)
No texto da Enquête thématique n˚ 3 tive a oportunidade de mencionar que uma das grandes restrições da vida à bordo está relacionado ao uso da energia. Os barcos de residentes deste Porto estão majoritariamente conectados à rede de energia elétrica externa, instalada para suportar as atividades cotidianas tanto das áreas comuns quanto das embarcações. O uso de eletrodomésticos (especialmente geladeiras), assim como de eletroeletrônicos (televisores, computadores etc) e sistemas de refrigeração (aquecimento para o inverno e, eventualmente, aparelhos de resfriamento para o verão), não adaptados para funcionamento em 12V, requerem o uso da rede de energia elétrica externa. Busca-se sempre a aquisição de equipamentos que possam usar ambas as fontes de energia – rede externa e energia armazenada nas baterias dos barcos, a partir de captação da energia solar ou gerada pelo funcionamento dos motores. Em função desta dependência da rede de energia externa – possivelmente um dos fatores de enraizamento dos “navegadores” neste Porto – surgem, recorrentemente, tensões e conflitos. De um lado tenta-se manter uma forma de vida urbana no interior de um barco e de outro, particularmente neste Porto, há o problema da sobrecarga no uso da rede externa de energia. Não se trata de demanda excessiva feita ao sistema, mas de seu subdimensionamento para as atividades atualmente desenvolvidas. Durante o inverno, quedas parciais ou totais da rede externa ocorriam, religiosamente, por volta das 20 horas; o sistema caia em razão do uso dos sistemas de aquecimento interno das embarcações e a tripulação dos barcos perambulava pelas margens do Canal do Midi, à procura de solução imediata para o problema. Após o reestabelecimento do sistema seguiam-se algumas linhas de “investigação”; duplas ou trios davam início à investigações particulares em relação aos motivos da queda do sistema, às vezes sucedida de troca de informações entre esses pequenos grupos, na tentativa de identificar « o culpado” – o barco que consumia mais energia. Essas investigações pessoais direcionadas à vida dos vizinhos, com caminhadas « despretensiosas » ao lado das embarcações, na busca por evidências e/ou provas « comprometedoras », tinham como alvo pessoas que não apenas compartilhavam o mesmo espaço de moradia, como também as mesmas demandas: manter-se aquecido durante o inverno, em situação de bem estar e com o mínimo de qualidade de vida. Mesmo com advertências por parte de alguns dos vizinhos, de que o problema não seria resolvido com a culpabilização de um navegante, mas sim com a correção de uma falha estrutural (o aumento da capacidade da rede elétrica, para a qual o Capitão do Porto já buscava solução), não foi suficiente para acalmar os ânimos. Por conta própria e de forma anônima, um ou outro vizinho, a cada dia, desconectava tomadas de alguns barcos, da rede de energia externa, como tática para “identificar” um culpado. Os frágeis conhecimentos na área da elétrica, por parte da maioria dos residentes, impedia o desenho de estratégias de melhor uso da rede, sem provocar sua queda; a maioria não sabia quanta energia consumia habitualmente e, por esse motivo, não podia avaliar competentemente a capacidade total da rede. Demandas suplementares na rede já subdimensionada (a busca por uma temperatura um pouco mais quente no interior de qualquer embarcação ou a ancoragem de um novo barco), recolocava o problema na pauta dos debates, agravava-o e com isso, táticas e estratégias, de partida parciais para enfrentamento do problema coletivo, fracassavam. Como resultado, as relações entre os vizinhos foram tensionadas; a cada situação vinculada ao mesmo problema, interações com novos ajustes nos vínculos sociais eram feitos, mediante distanciamentos, rearranjo nos laços de vizinhança e a constituição de vínculos isolados de camaradagem. A finalidade expressa por estas decisões, deliberadamente tomadas, entretanto, não gerou a resolução dos problemas – tanto individuais quanto coletivos. A despeito ainda das questões éticas envolvidas nas situações em que a vontade pessoal e arbitrária manifestou-se, a busca da garantia da liberdade individual fragilizou o mesmo direito à liberdade de todos, ocasionando por conseguinte, a desconsideração da isonomia – o princípio de que todos são iguais.
Se, em princípio, o problema implica a todos e incita a participação dos residentes em sua resolução, a ausência de um sentido de comunidade explicita que o compartilhamento do espaço de moradia e, mesmo de um aparente “mundo de sentido comum”, não foram suficientes para a conformação de uma coletividade e de espaços de decisão coletiva. Em primeiro plano esteve a percepção do problema, a partir de uma leitura individual, que se desdobrou em uma busca por soluções para questões individuais ou de caráter individualista, remontando dinâmicas de vida no ambiente urbano. Tais condutas sobrepuseram-se às demandas coletivas por bem estar e qualidade de vida e ao delineamento de uma percepção social da situação, bem como de estratégias de cooperação entre os residentes, para melhor distribuir a demanda de uso com o aproveitamento ótimo/máximo de toda a rede, sem desestabiliza-la. Uma pequena iniciativa de tratamento coletivo do problema foi capitaneado por três dos residentes, com maior proximidade entre si – exemplo desta proximidade é o fato de que com alguma regularidade reuniam-se para cafés ou jantares, a cada hora, no barco de um ou de outro. Estes colegas reuniram-se com o Capitão do Porto para apresentar os recorrentes problemas vividos em sua ausência e ouvir suas propostas de encaminhamento; constataram que sua resolução completa dependeria de uma ação demorada, ampla e interinstitucional – ou seja, demoraria. A solução encontrada conjuntamente pelos três vizinhos colegas foi instalar relógios para controle individualizado do consumo de energia, que repercutiria mudanças no sistema de cobrança de consumo. Tal iniciativa acabou não se concretizando e o resultado da tentativa frustada de solução coletiva dos problemas ocasionou a saída de dois dos navegadores do Porto, que passaram a ancoragem de suas embarcações para área externa, mas contígua ao seu perímetro e a permanência de apenas um dos navegadores, em sua localização anterior. Ao fim e ao cabo, no tratamento dos conflitos não houve o uso da liberdade com a finalidade de pensar o novo em termos coletivos, na perspectiva de conformar um ambiente em que as diferenças e os diferentes fossem tratados como iguais, que a garantia de suas liberdades fosse doravante pensada como um direito, capaz de estruturar de novas relações interpessoais cotidianas e outras formas de vínculos sociais.

Fonte: Elaboração própria (maio 2020)
O ambiente liminar do Porto em que empreendo tais observações recontextualiza relações características do espaço urbano, de busca pela prevalência da vontade interior – no plano individual -, de pressões de vizinhos residentes para uma relação mínima de citadinidade – um equilíbrio entre deveres e direitos -, de uma vida cotidiana suportada por facilidades infraestruturais e de serviços urbanos, de proximidade com vias rodoviárias entre outros. Todavia, ao mesmo tempo, busca-se redesenhar o ritmo de vida cotidiana e das atividades a esta vinculadas, uma nova forma de fruição do tempo disponível/livre, com liberdade nas mobilidades, na definição das relações de proximidade e nos vínculos com os lugares… Paradoxalmente, a nova e livre vida almejada vem sendo assentada, por esses residentes, em bases citadina bem conhecidas e arraigadas; os espaços são outros, os lugares também, mas as formas de se relacionar continuam estáveis com o que é fixo, material e mesmo com o que é fluído, imaterial, oscilante e passageiro… As tensões advém de variáveis externas, mas também do enquadramento de situações, ambientes e grupos de pessoas à um padrão de relação, ação e resposta às tensões e aos conflitos outrora apreendidos.
Arrisco pensar que, em um ambiente e contexto de vida como este, uma rede de “tripulantes” seria, possivelmente, móvel, independente de um território ou de uma localização física específica, além de dinamicamente organizada. Por sua experiência de mobilidades, estaria mais inclinada à resolução coletiva de conflitos – uma prática corrente nas embarcações durante navegações -, dado que a participação de todos os tripulantes é indispensável. Sua ancoragem, dada a fluidez de seus vínculos, estaria em elementos materiais e imateriais móveis, tão dinâmicos quanto a forma de organização da vida cotidiana e social, que formas de vida cotidiana distintas e tão particulares, como esta, permitem.
Referências
AGIER, M. Anthropologie de la ville: lieux, situations, mouvements. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011.