O tempo é um dos bens mais preciosos do ser humano. A vida social dos cidadãos, considerando uma apreciação sucinta, é composta de tempos dedicados à diferentes atividades, tais como aquelas de caráter biopsicológico, sociais, culturais, políticas, de trabalho, de ócio e de lazer (MUNNÉ, 1980; WAICHMAN, 1997). Qualquer atividade não realizada no momento presente (no agora), pode ser postergada para um outro tempo, por razões internas ou externas ao sujeito, mas o tempo anteriormente previsto para sua realização, não; este tempo já foi perdido, usado ou vivenciado.
O uso do tempo está subordinado, em tese, à deliberação do sujeito, no pleno uso da liberdade – àquela interior e também àquela social, vivida na relação com a sociedade. A liberdade representa uma das mais distintas características do ser humano; é a que informa a diferença que os seres humanos possuem em relação à todas as outras coisas que existem no mundo: não estão submetidos ao sistema determinista da natureza e, portanto, não agem exclusivamente pautados por relações de causas e efeitos. A liberdade informa, também, a condição de igualdade existente entre todos os sujeitos; todos « potencialmente » agem por liberdade, por escolha, por deliberação, por decisão, escolhendo os fins de suas ações (CHAUÍ, 2008).
A liberdade, além de ser uma característica, é ainda uma temporalidade, uma finalidade e um valor que explicita, portanto, que todos são iguais, mais precisamente, que tem igualdade de direitos e deveres, e que a igualdade dos seres humanos é a própria liberdade (CHAUÍ, 2008). É um meio temporal – social, cultural e historicamente definido -, de vivência da subjetividade e de subjetivação do ser humano. Se de um lado é no interior de nosso ser que experienciamos livremente emoções, exercitamos ideias e saberes, elaboramos significados e sentidos na relação com as coisas, os espaços, as instituições, as pessoas, de outra parte, é por meio do exercício social da liberdade que manifestamos a vontade e desenvolvemos tanto a capacidade quanto o poder de, na relação política com o outro, criar o possível e outras realidades possíveis (HARENDT, 2009).
É no tempo livre que experimentamos e aprendemos a vivenciar, integralmente, o livre uso do tempo. É nesse tempo e nos espaços socioculturais que vivenciamos a liberdade, que reconhecemos as diferenças e desigualdades existentes na sociedade, que observamos os campos de forças que a permeiam, bem como as disputas e os conflitos vinculados a tais campos. A vivência da liberdade confronta-nos com a sociedade, múltipla, constituída de diversos grupos sociais, assim como, quando encarnada da condutas éticas, franqueia a criação das condições para afirmação da democracia e do poder social.
Na maior parte do tempo, em nossas vidas privada e social, vivenciamos uma liberdade contingente, ou seja, considerando Waichman (1997) e Harendt (2009), dotada de maior interferência de ações e forças exteriores na definição das obrigações. No senso comum, desenvolveu-se uma grande expectativa de fruição plena da liberdade, no tempo de lazer: durante as atividades de ócio, as diversas atividades desenvolvidas no tempo de não-trabalho e, inclusive, naquelas relacionadas ao turismo.

Fonte: Elaboração própria (maio 2020).
Fato é que, há algumas décadas, como bem lembra Cousin (2016), poucas gerações vivenciaram, vivenciam e/ou nasceram em sociedades nas quais tanto reconheceu-se social e legalmente o tempo de não trabalho semanal regulamentado e remunerado pelo trabalho, quanto o tempo “livre » das últimas décadas de vida, também regulamentado e remunerado por uma vida profissional social ativa. Em razão das transformações decorrentes destas conquistas, uma parte da sociedade detém, em sua vida cotidiana, tempos que podem ser integralmente dedicados ao lazer. São os usos destes tempos que serão objeto de reflexão ao longo do texto, a partir das observações realizadas nas margens do Canal do Midi, desde a semana do dia 19 de maio de 2020 (segunda semana após a flexibilização oficial das regras de isolamento físico).
O lazer nas margens, o Canal do Midi como ambiência
O aumento e diversificação das práticas de lazer ao longo das margens do Canal do Midi, nos arredores das cidades de Sallèles d’Aude, Le Somail e Mirepeisset, vem sendo sistematicamente observados, nas últimas duas semanas. Os usuários, possivelmente habitantes destas cidades ou ainda, provenientes de Saint-Marcel e de outras cidades da região (que visitam o canal fazendo uso de veículos individuais de passeio, motos ou de camping-cars), são em número significativamente superior àqueles vistos durante o isolamento físico.
Estão em plena fruição de seu tempo livre: praticam esportes – corridas, percursos com uso de bicicleta -, passeiam com amigos e familiares, pescam e/ou tomam banhos de rio, aproveitando para refrescar-se nas águas límpidas do rio Cesse e alguns navegam. Constituem um grupo com faixas etárias distintas e há uma recorrência no desenvolvimento de práticas em companhia de alguém (pequenos grupos de familiares ou amigos); poucos realizam atividades individualmente.

Fonte: Elaboração própria (maio 2020).
A julgar pelo comportamento dos usuários, a maior parte desenvolve suas práticas de forma autônoma e livre, sem organização prévia, acompanhamento ou gestão de instituições e, portanto, sem alguém que direcione o olhar e que oriente as práticas dos sujeitos. Por conseguinte, não se observa a prática da recreação no sentido expresso por Waichman (1997, p. 131), atividades manifestas “[…] sob um modelo organizativo e num sistema (por exemplo, uma colônia de férias, uma oficina de ciências etc.), que implicam a formulação de objetivos educativos e uma determinada continuidade temporal […] [vinculadas a] um currículo, um conjunto de objetivos (não de conteúdos) que devem ser atingidos, do qual devem ser partícipes e criadores os próprios recreando […] [assim como, a busca pelo] desenvolvimento da participação efetiva, consciente e comprometida, mediante organizações autogestores (autocondicionamento)”.

Fonte: Elaboração própria (maio 2020).
A apropriação do espaço público para vivência da liberdade em contato mais estreito com a « natureza » e o patrimônio cultural, dá-se em um espaço desprovido de equipamentos especificamente destinados ao lazer. As margens do Canal do Midi, outrora projetadas para o trânsito dos cavalos responsáveis por puxar as embarcações comerciais que por aqui transitavam, salvaguardam como patrimônio o valor técnico e cognitivo imanente ao projeto construtivo do Canal, de pontes e do sistema de eclusas; a memória da ousadia do empreendedor Pierre-Paul Riquet no séc. XVIII e dos usos históricos feitos deste espaço; o valor paisagístico; os valores culturais locais presentes na gastronomia, nas atividades de produção agrícola dos vinhedos, de produção de queijos, de olivas, de embutidos elaborados nos arredores do Canal (UNESCO, 2020). Constituem o lócus e as vias para a apreensão de uma série de elementos materiais e imateriais, por meio de práticas e vivências aqui desenvolvidas.

Fonte: Elaboração própria (maio 2020).
Não há pistas de skate, ciclovias, ciclofaixas, bancos, mesas para piquenique, espaços para eventos etc. Por este ângulo, também não há uma estrutura física projetada para estimular o encontro, os intercâmbios, a socialização. À luz das proposições de Santini (1993) e de Stucchi (2000), tanto as margens do Canal do Midi quanto seus espaços envoltórios constituem « espaços não-específicos de lazer”, ou seja, não foram projetados e construídos com a finalidade de uso de lazer e, com o passar do tempo, mantém suas finalidades projetuais em pari passu à sua apropriação como espaços de lazer.
O descanso (mental, físico e emocional), divertimento e desenvolvimento e as interações sociais, a partir de um desejo entre as partes que interessam-se por ultrapassar a fronteira da conexão visual e do apenas cruzar com o outro, aqui, acontecem de maneira livre e por ocasião de vontades pessoais. Contrariamente às afirmações de que o espaço físico é o responsável pelo estímulo à formação do sujeito, por parte de alguns arquitetos e urbanistas, o desenvolvimento dos sujeitos e sua formação como cidadãos desenrola-se de uma forma livre, em uma base patrimonial urbano-rural, caracterizada como espaço de passagem, de produção agrícola, de conexão entre propriedades e espaços urbanos.

Fonte: Elaboração própria (maio 2020).
As múltiplas e históricas convivências observadas expressam um caráter multicultural, que em pequeno período do ano (de alta temporada turística entre junho e setembro), inclusive, explicitam relações interpessoais de lazer com interface de referências e culturas locais-regionais-globais. As diversas formas de apropriação social e a conformação de espaços de subjetividade e subjetivação, portanto, qualificam esse território como lugar, como espaços de socialização, de exercício da liberdade interior e social, bem como de conformação do eu na relação com os outros, com os espaços e todo seu legado simbólico e imaterial.

Fonte: Elaboração própria (maio 2020).
As práticas de lazer aqui observadas representam, de uma parte, manifestações das necessidades e interesses dos sujeitos históricos e de outra, a valorização do patrimônio material e imaterial, mediante uso, apreensão e apropriação de seus legados. Compreendem ações individuais significativas de desenvolvimento pessoal, conformadas pela articulação concomitante de saberes/conhecimentos, emoções, experiências concretas/práticas e do lúdico – movimento, ordem, solenidade, tensão, ritmo, mudança e entusiasmo (HUIZINGA, 2000). Compreendem também ações coletivas legítimas de reafirmação de direitos que, para um grande grupo de pessoas à margem de situações dotadas de bem estar e qualidade de vida, em diferentes lugares do mundo, é ainda uma fronteira.
O lazer à margem: vidas cotidianas fartas de imobilidades
Buscando desviar da possível romantização do olhar a respeito das práticas de lazer que nas margens do Canal do Midi conformam o uso de uma parte do tempo das pessoas observadas, é necessário lembrar que a exploração econômica, a dominação política, as desigualdades, a exclusão social entre outros fatores, constituem ainda barreiras ao lazer e, por conseguinte, ao pleno desenvolvimento do sujeito e de sociedades democráticas. Outrossim, desejo dissuadir os leitores deste texto de uma eventual naturalização da leitura de que os usuários deste Canal possuem tempo livre e disponível suficiente, do ponto de vista quantitativo e qualitativo, que permita uma vida cotidiana de plena satisfação e bem-estar.
Embora corrobore com Certeau (2013, 31-32) que “o cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior” e, a partir das considerações anteriormente tecidas possa propor que as práticas de lazer são, entre outras atividades, responsáveis pela atribuição de um sentido para o cotidiano “[…] ligando uma arte do fazer a uma arte do viver”, reconheço que os lazeres explicitem valores de classe, tanto quanto fronteiras.
As práticas de lazer e inclusive as mobilidades turísticas, seguem encarnando sinais de distinção social. A despeito dos múltiplos propósitos embutidos nestas práticas, o cotidiano não inclui, inevitavelmente, o lazer; idade, renda, posição na estrutura social, distancia entre residência e trabalho, formação acadêmica, gênero são alguns dos elementos que explicitam limitações para fruição regular do lazer, assim como para a experimentação de práticas com qualidade – disponibilidade para e possibilidade de definição pessoal do tempo dedicado à tais práticas; posse de condições materiais para realizá-las, para beneficiar-se de satisfação e prazer; a percepção de que estas atividades oferecem possibilidades de desenvolvimento, significados e sentidos renovados para a vida; e, de alguma forma, a liberdade para cruzar a fronteira do ordinário.
Infelizmente, a maior parte das sociedades, quando reune condições temporais, biológicas, psicológicas, socioculturais e materiais, ainda vivencia o lazer como prática residual da vida cotidiana, isto é, como uma práxis e temporalidade residual da vida, que “sobra” após o trabalho, “consumida” pelo cansaço e que é “gasta » com distração. As práticas e o tempo para o lazer não ocupam (ou não é permitido que ocupe), com a mesma importância e valor atribuído às atividades produtivas, a vida cotidiana e social.
Será que perdemos a sabedoria pessoal de uso do tempo, como os meios de comunicação de massa nos querem fazer crer, por meio da infinidade de guias, diretrizes, programas e sugestões sobre o que fazer com o tempo, durante a pandemia do COVI-19? Será que perdemos a capacidade de atribuir e fazer bom uso de nosso tempo diário e semanal, no desenvolvimento de atividades de caráter obrigatório – inclusive laborais -, semi-obrigatório (atividades em relação as quais assumimos um compromisso e regularidade interior, a exemplo de atividades domésticas, sociopolíticas, religiosas etc.) e livres?
Referências
ARENDT, H. 2009. Que é Liberdade? In: ____. Entre o passado e o futuro. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, p. 188-220 (Debates; 64).
BRUHNS, H. T. 2002. De Grazia e o lazer como isenção de obrigações. In: BRUHNS, H. T. (Org.). Lazer e Ciências Sociais: diálogos pertinentes. São Paulo: Chronos, p. 15-39.
CHAUÍ, M. 2008. Culture et démocratie. Revista latino-americana de Ciencias Sociales, ano 1, n. 1, jun. 2018, Buenos Aires: CLACSO.
CERTEAU, M.; GIARD, L.; MAYOL, P. A invenção do cotidiano: Morar, cozinhar. v. 2. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
COUSIN, S. 2016. Sociologie du tourisme. Paris: La Découverte.
HUIZINGA, J. 2000. Homo ludens. Tradutor: João Paulo Monteiro. 4. ed. São Paulo: Editora Perspectiva.
MUNNÉ, F. 1980. Psicosociología del tiempo libre: un enfoque crítico. México, DF: Trillas.
SANTINI, R. C G. 1993. Dimensões do lazer e da recreação: questões espaciais, sociais e psicológicas. São Paulo: Editora Angelotti.
STUCCHI, S. 2000. Espaços e equipamentos de recreação e lazer. In: BRUHNS, Heloísa Turini. Temas sobre o lazer. Campinas: Autores Associados, p. 105-121.
UNESCO. Canal du Midi – La Liste. Disponível em: < https://whc.unesco.org/fr/list/770/>. Acesso em: 01 jun. 2020.
WAICHMAN, P. 1997. Tempo livre e recreação: um desafio pedagógico. Tradução: Jorge Peres Gallardo. Campinas Papirus. (Coleção Fazer/Lazer)