Versão em português da Enquête thématique n˚ 8 – “Libertação das máscaras”, Maria Helena, Brasil/França

O Porto em que realizei os primeiros meses de exercícios etnográficos em meio ao período da pandemia do COVID-19 não é, nem de longe, um espaço relevante nas rotas turísticas. Embora abrigue diferentes barcos com residentes e esteja localizado no maior trecho sem eclusas do Canal do Midi (entre Trèbes e o Étang de Thau) – justamente onde estão localizadas diferentes empresas de locação de barcos para charter náutico – um guia turístico especializado no Canal afirma que esse porto é “[…] où rien n’encourage à s’attarder, excepté les nécessités matérielles telles que plein d’eau ou de gasoil […]” (GAST, 2014, p. 59). Ademais, as questões que promovem maior socialização e processos decisórios entre os seus residentes – permanentes e temporários – mantém-se as mesmas: instabilidades da rede elétrica externa, uso e gestão dos toaletes, canais de comunicação entre gestão do Porto e proprietários de embarcações. 

O início do verão, a abertura das fronteiras entre a França e da União Européia, começaram a animar a circulação de lazer entre as cidades; é diminuto o número de turistas, mas, gradativamente, o fluxo de visitantes e o trânsito de embarcações começa a aumentar nesta via líquida entre dois mares – o Oceano Atlântico e o Mar Mediterrâneo. Propositalmente, para acompanhar a retomada das dinâmicas de lazer, assim como ampliar e afinar minhas reflexões a respeito das práticas de lazer e turismo, ainda antes da abertura autorização para abertura de bares, restaurantes e estabelecimentos de turismo, inclui em meu espaço de observações, a cidade de Somail.

Apesar do público visitante ser em sua maioria de lazer, a infra-estrutura direta ou indiretamente ligada ao lazer nos espaços públicos desta pequena cidade é escassa ou apresenta problemas de manutenção (está mal conservada, não é adequadamente limpa etc.).

Espaços de lazer esquecidos
Fonte: acervo da autora (jun. 2020).

Há três projetos em execução que empreendem obras de infraestrutura e paisagismo nas margens do Canal, dois destes especificamente nas imediações do Posto de informações Turísticas e do Porto da Nicols.

Requalificação urbana
Fonte: acervo da autora (jun. 2020).

Destarte o discurso de requalificação, de valorização paisagística, dos elementos arquitetônicos do sítio Patrimônio da Humanidade e desenvolvimento dos espaços públicos, na prática, estes projetos, buscam maior rentabilização turística do patrimônio e das atividades fluviais, mediante a implementação de projetos que facilitem o desenvolvimento econômico de atividades de turismo náutico e de serviços portuários (inclusive de melhor gestão de fluxos do tráfego fluvial): na fase 1) o desenvolvimento de uma zona de recepção atrás da Maison Bonnal (que abriga o Posto de Informação Turística); e na fase 2) a requalificação de uma área de estacionamentos arborizada para 130 veículos leves, instalações sanitárias, área de serviço e um campo para orientação dos visitantes.

Requalificações em curso
Fonte: acervo da autora (jun. 2020).

Le Somail é apontada nos guias turísticos como um charmoso ponto de parada nas rotas/viagens turísticas e os visitantes, em sua maioria, parecem assim considerá-la; param por algumas horas na cidade, antes de seguir viagem e não se cansam em fazer registros fotográficos nos arredores da ponte e da « glacière ».

Em contrapartida, enquanto destino turístico, Somail padece dos problemas similares à outros pequenos destinos que integram rotas regionais: público sobretudo de excursionistas e visitantes ocasionais, concentrado em alguns meses do ano, majoritariamente oriundos de grandes e médias áreas urbanas, pouco dispostos a explorar mais profundamente vilarejos e cidades, a adentrar no interior da trama urbana assim como, desvendar os arredores da cidade, por vias alternativas às estradas. 

Mobilidades que incentivam mobilidades…

A maior parte dos visitantes e turistas chegam na cidade fazendo uso de veículos de passeio privado (carros e motos), mas a chegada de ciclistas é constante e crescente ao longo das últimas semanas, assim como o número de tripulantes de barcos de locação. Em menor número estão os residentes/viajantes em camping-car e caminhantes, que empreendem deslocamentos de lazer e turismo regionais, à pé.

Mobilidades turísticas
Fonte: acervo da autora (jun. 2020).

Fato curioso é que os visitantes que chegam ou passam por Le Somail à bordo de barcos de locação são os mais propensos ao uso combinado de formas de mobilidade. A maioria dos barcos transporta também bicicletas, situação que, em teoria, incentiva a exploração de núcleos urbanos, atrativos e propriedades nos arredores do Canal do Midi – vinhedos, oliveiras, museus, estabelecimentos gastronômicos etc. Observa-se, ainda, a presença de pranchas de stand-up paddle e boias nestas embarcações. 

Mobilidades por prazer
Fonte: acervo da autora (jun. 2020).

As embarcações assumem o papel de meio de transporte, residência, hospedagem turística, espaço de lazer  e entretenimento, assim como de bar e loja/epicière.

Já os visitantes que chegam de bicicleta ou caminhando, na maior parte das vezes, em sua experiência de lazer, não combinam meios diferentes de mobilidade. De outro lado, os que chegam em veículos de passeio privado são os que menos se aventuram pela cidade; percorrem trechos nas imediações do Canal – sobretudo em suas margens na área urbana -, ou caminham diretamente para os restaurantes onde desejam almoçar ou jantar. Uma pequena parte deste público opta por realizar passeios em um dos cruzeiros comentados, grupo que, dessa forma, acaba por estender seu período de permanência na cidade e a combinar, em uma mesma visita, distintas formas de mobilidade e de relação com os espaços e com o tempo.

Cruzeiros comentados
Fonte: acervo da autora (jun. 2020).

Mobilidades por prazer

Os visitantes integram, majoritariamente, grupos de adultos (com 30 anos ou mais) e de terceira idade – casais; casais com filhos; casais com filhos acompanhados de avós e/ou tios; casais de amigos; grupos de amigos e alguns poucos visitam a cidade sozinhos. Há uma distribuição equilibrada entre homens e mulheres, a maioria são franceses, seguidos de estrangeiros residentes na França (entre si falam a língua materna, mas com os prestadores de serviços, o francês) e provém de áreas urbanas. Ademais, desde o primeiro final de semana de julho, o número de famílias que chegam cresceu consideravelmente: casais com filhos, acompanhados ou não de avós, tios e de outros casais com filhos. Outro fato curioso para o período de pandemia que vivemos: pouquíssimos usam máscaras! 

Caminhantes
Fonte: acervo da autora (jun. 2020).

O número de visitantes/turistas estrangeiros, notados por falarem exclusivamente outros idiomas (alemão, italiano, inglês ou línguas asiáticas) é ainda muito pequeno (no máximo seis casais por semana, nas quatro últimas semanas de observação). Esses fatos parecem explicitar não apenas a lenta retomada do turismo – na cidade que habitualmente recebe mais de 150 mil visitantes por ano -, mas também a retomada das atividades laborais.

A idade, sexo, idade, cidade de origem, composição dos grupos e tipo de mobilidade escolhida pelos visitantes não oferecem pistas suficientes para leitura de seus comportamentos, de suas identidades e formas de identificação. Por exemplo, entre os visitantes ciclistas e caminhantes há um número relevante de pessoas socialmente percebidas como “idosos”, parte destes que são notoriamente turistas, optaram viajar usando bicicletas ou caminhando – haja vista a bagagem que portam. Cabe salientar que o tipo de mobilidade escolhida constitui uma variável complementar na análise do perfil e identidade do viajante; pode sugerir o ritmo e as velocidades (ÉRRÁZURIS, 2017; SINGH, 2017); relações estabelecidas com o espaço; transformações no espaço público (ÉRRÁZURIS, 2017, GIUCCI, 2017); diferentes temporalidades da viagem e da experiência de mobilidade no espaço urbano (ÉRRÁZURIS, 2017); espaços de distribuição, concentração e limitação de movimentos, assim como espaços em que os movimentos geram consumo, em que há produção de movimentos ou inversamente, no qual os movimentos produzem espaços (GALVIZ, 2017); possibilidades de conformação de lugares e redes de sociabilidade (ÉRRÁZURIS, 2017) entre outros.

Uma outra variável que favorece a identificação de informações adicionais sobre os visitantes dessa região de campo: a vestimenta e calçados escolhidos. Essa variável não permite uma ampla discriminação dos visitantes, mas possibilita reconhecer, mais facilmente, aqueles que buscam explorar os interiores das cidades e região: usam trajes mais confortáveis e que permitem diferentes movimentos físicos, calçados mais confortáveis e preparados para longos percursos, chapéus, óculos de sol. Os esportistas, em particular, destacam-se pelo uso de roupas tecnicamente mais elaboradas, o que também não deixa de ser uma forma de identificação grupal …

Caminhantes nada convencionais
Fonte: acervo da autora (jun. 2020).

E que fazem os visitantes que chegam em Somail? Entre as atividades recorrentes estão refeições nos bares, restaurantes e sorveterias nas margens do Canal; visita à livraria – a “Librairie Ancienne » -; curtos passeios à pé nas margens do Canal – especificamente no entorno da antiga ponte, hospedaria e glacier -; registros fotográficos da cidade; e passeios nos barcos de cruzeiros comentados – “La Capitaine” e “La Barque du Somail” e em pequenas embarcações com bateria elétrica; e passeios de bicicleta locadas na cidade. Recentemente, começaram a ser realizadas visitas guiadas aos principais atrativos da cidade, por grupos à cavalo e por grupos conduzidos por atores trajados à moda do século XVIII, para visitantes que chegaram ao destino em veículos automotores.

Tours
Fonte: acervo da autora (jun. 2020).

Mesmo após desembarcarem de seus veículos de mobilidade primeira, que os permitiu chegar à Somail, continuam vivenciando situações de mobilidade, uns mais intensamente – caminhando, fazendo percursos de bicicleta ou em embarcações – outros menos – curtas caminhadas pelas ruas mais movimentadas. Os ritmos que presidem as mobilidades internas do vilarejo são sempre calmos, mesmo entre aqueles que estão de passagem e param por algumas horas. 

A despeito de ser um destino consagrado ao lazer, que acolhe um público dinâmico de pessoas em situação de turismo, a falta de investimentos em infraestrutura e em estruturas e equipamentos voltados ao lazer e à socialização distancia os moradores da cidade dos espaços públicos – poucos são vistos nos espaços frequentados pelos turistas e em momentos esporádicos. Outrossim, reduz as interações e os intercâmbios dos residentes com os visitantes e turistas, as possibilidades e potencialidades das socializações secundárias e a reafirmação do direito à cidade. Parece que a desatenção com espaços públicos de lazer que estimulem a transcendência da co-presença corporal, da constituição de “famílias de olhos” (GIUCCI, 2017) e da interação mediante uso da linguagem corporal não é privilégio do Porto em Sallèles d’Aude.

Referências

GAST, R. 2014. Canal du Midi et les voies navigables. France: Editions Ouest France.

ERRÁZURIZ, T. Pasajeros. 2017. In: SINGH, D. Z.; GIUCCI, G.; JIRÓN, P. (Ed.). Términos clave para los estudios de movilidad en América Latina. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Bibloz. p. 139-146.

GALVIZ, C. L. Circulación. 2017. In: SINGH, D. Z.; GIUCCI, G.; JIRÓN, P. (Ed.). 2017. Términos clave para los estudios de movilidad en América Latina. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Bibloz. p. 57-64.

GIUCCI, G. 2017. In: SINGH, D. Z.; GIUCCI, G.; JIRÓN, P. (Ed.). 2017. Términos clave para los estudios de movilidad en América Latina. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Bibloz. p. 197-206.

SINGH, D. Z. Ritmo/ritmoanálisis. 2017. In: SINGH, D. Z.; GIUCCI, G.; JIRÓN, P. (Ed.). Términos clave para los estudios de movilidad en América Latina. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Bibloz. p. 139-146.

Une réflexion sur “Versão em português da Enquête thématique n˚ 8 – “Libertação das máscaras”, Maria Helena, Brasil/França”

Votre commentaire

Entrez vos coordonnées ci-dessous ou cliquez sur une icône pour vous connecter:

Logo WordPress.com

Vous commentez à l’aide de votre compte WordPress.com. Déconnexion /  Changer )

Photo Facebook

Vous commentez à l’aide de votre compte Facebook. Déconnexion /  Changer )

Connexion à %s