As férias de verão tem impulsionado a chegada de centenas de visitantes/turistas, por dia, em destinos turísticos, mesmo neste contexto ainda instável de pandemia COVID-19. Suas caminhadas suaves, em ritmos lentos, pausadas por visões panorâmica das cidades, por revelações feitas por novos ângulos do olhar, pelo desejo do registro, do relaxamento e do compartilhar impressões, assim como por visitas aos atrativos do lugar, imprimem ritmos distintos de apreciação, interpretação e uso cultural do patrimônio.

Fonte: desenvolvimento próprio (jul. 2020).
Não são apenas os ritmos de interpretação, apreensão e uso cultural do patrimônio que variam de pessoa para pessoa; o arcabouço cultural, os processos de aprendizagem, os usos dos sentidos, as sensações e emoções e, inclusive, interferências externas ao indivíduo, também medeiam de maneira diferencial a relação com os bens patrimoniais e colaboram com formação individualizada, autônoma e livre do sujeito histórico.
A interpretação do patrimônio ambiental, ou seja, dos bens presentes no meio ambiental considerados caros para os grupos sociais e/ou salvaguardados por instituições oficiais de preservação, por sua vez, compreende um processo complexo, interdisciplinar e de sensibilidade.
Contatos com o patrimônio
Em minhas pesquisas de campo tenho observado, tanto em espaços urbanos quanto em equipamentos culturais, a espontaneidade com que o sujeito envolve-se com algum elemento que lhe solicita a atenção; na maior parte das vezes, é um processo individual, mesmo estando-se em grupo, que pode estender-se ao compartilhamento das primeiras impressões e da reflexão sobre estas com os demais membros do grupo. Os indivíduos mais jovens experimentam o ambiente por meio de práticas mais lúdicas e estão mais propensos a mobilizar o uso de diferentes sentidos, simultaneamente, não raro buscando vivenciá-los por meio do toque, do contato corporal.

Fonte: desenvolvimento próprio (jul. 2020).
A investigação do vivido para a maioria das pessoas começa pela exploração visual, a qual soma-se o inquérito auditivo, o paladar, o olfato, raramente chegando ao tato. Há também uma certa premência por manter-se em movimento; é incomum observar visitantes/turistas contemplando por longas horas, um lugar de seu destino. Talvez em razão da escassez de tempo dedicado a essa exploração in loco do mundo real, talvez porque a quantidade de elementos que se queira observar é superior ao tempo de permanência possível no destino ou, ainda, possivelmente, porque o tempo da contemplação, em uma perspectiva histórica, perdeu importância em relação ao tempo da produção.
No início do século XX, Simmel (1989, p. 41) registrou que o indivíduo que habita a grande cidade desenvolve-se sob uma base psicológica caracterizada pela “[…] intensificação da vida nervosa, que resulta de rápida mudança e ininterrupta das impressões internas e externas”. Desta base, em sua análise, derivam comportamentos «blasé », reservados, de elevada individualidade, vinculados à hiperestimulação, hiperexcitação e/ou à hipertrofia do olhar ; têm em comum o fato de serem, fundamentalmente, marcados pela racionalidade/intelectualização e pela dificuldade em avaliar/dimensionar a importância e o valor das diferenças de quantidade e das diferenças de qualidade, cada uma a sua maneira.
A despeito de todos os esforços empreendidos pelas instituições culturais e de turismo, as limitações de recursos e de quadros técnicos tem implicado o distanciamento entre visitantes/turistas dos acervos de bens culturais. Se esse distanciamento não se dá pela baixa visitação – afinal o morador visitou a coleção de bens em uma atividade escolar e « já viu tudo o que tinha para ver » – dá-se pela enorme distância criada pela linguagem e/ou pela anestesia explicitada, em diferentes situações, pelo público visitante à amplitude das características e das redes de informações associadas aos bens, « objeto-portador-de-sentido » (MENEZES, 1996 ; NORA, 1993 ; SIMMEL, 1989).

Fonte: desenvolvimento próprio (jul. 2020).
Observo que os mais jovens tem dificuldade de prender sua atenção nas informações comunicadas por meio do uso de linguagens e suportes de informação distantes e, talvez, ultrapassados em relação àqueles que estão habituados a usar cotidianamente. Já os adultos, com mais desenvoltura e interesse – e isso não vale para todos os visitantes – leem com mais atenção as informações compartilhadas por placas interpretativas, não se furtando a investigar, detalhadamente, os bens culturais materiais – a coleção exposta nos museus -, bem como as instalações que reproduzem espaços de vida e reprodução da vida (jardins), produções artísticas, edifícios, jardins e caminhos erigidos pelos grupos sociais que, ao longo da história, habitaram a região.
Em algumas situações os adultos instigam o olhar das crianças e jovens, indicando pontos interessantes de observação, elaborando questões a respeito dos bens vistos, compartilhando uma informação/história previamente conhecida. Contudo, cabe ressaltar que, em muitos casos, ambos empreendem pela primeira vez e, simultaneamente, uma visita ao mesmo acervo.

Fonte: desenvolvimento próprio (jul. 2020).
Há também situações em que os adultos inquietam-se com as infindáveis perguntas das crianças, incansáveis na busca por respostas de todo aquele universo novo que se coloca diante de si e de seu repertório de vida cotidiana. De outro lado, os jovens pré-adolescentes e adolescentes parecem mais enfadados; a falta de movimento e excitação dos sentidos, a linguagem usada, o tempo e o processo necessário à decodificação, assim como a aparente ausência de aplicação prática das informações intrínsecas aos elementos que se colocam diante de si, parecem poder ser mais facilmente substituídos pela conversas nas redes sociais e aplicativos de comunicação, pelos jogos e vídeos que portam em seus dispositivos móveis…
Usos do patrimônio
A apreensão do patrimônio cultural dá-se de forma diferenciada, para faixas etárias distintas, mas é possível observar também um distanciamento, por um lado, entre indivíduos com idades distintas e que integram o mesmo, bem como, de outro lado, entre gestores do lazer, da cultura e do patrimônio, das linguagens correntemente utilizadas pelos diversos grupos de visitantes. A ausência de estímulo ao uso de diferentes sentidos, simultaneamente, sobretudo para as gerações que nasceram na era da tecnologia, pode ser um fator limitador da experiência de lazer e de uso cultural do patrimônio.
As linguagens que hoje suportam processos autônomos de mediação, assim como a elaboração dos significados, dos sentidos da cultura e do patrimônio e culminariam em reflexões acerca das identidades, parecem familiares a uma parte dos visitantes. Não se trata, ao que parece, de transportar todos os processos interpretativos para uma linguagem com intenso uso de ICT’s e superestimulação dos sentidos, mas de pelas diversas possibilidades de uso da tecnologia melhor comunicar redes de informações, problematizando-as em face da realidade e, mesmo, incitando a reflexão acerca do uso da tecnologia na vida social contemporânea.
Como infere Simmel (1989), a aquisição da liberdade de movimento, por meio de processos autônomos, variados e sensíveis de desenvolvimento, franqueia a aquisição, pelo indivíduo, de uma originalidade e singularidade de suas qualidades, indispensáveis a decodificação do mundo, aos intercâmbios, ao situar-se como sujeito histórico e ao trânsito entre os diferentes lugares e redes de socialização.

Fonte: desenvolvimento próprio (jul. 2020).
O constante e dinâmico desenvolvimento humano amplia os horizontes das relações de vida, em caminhos nos quais tensionam-se fronteiras, incitam-nos à consciência da agitação, da excitação, vindas de fora, assim como as estreitas relações entre as tensões, o implicar-se e a qualidade de vida; o indivíduo define-se e preenche-se « […] pela soma das ações que se estendem à partir dele no tempo e no espaço […] » (Ibid., p. 62).
Referências
MENESES, U. B. De. 1996. Os « usos culturais da cultura » – Contribuição para uma abordagem crítica das práticas e políticas culturais. In: YÁZIGI, E. A. (Org.). Turismo e Cultura. São Paulo: HUCITEC, p. 88-99.
NORA, P. 1993. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, n. 50, São Paulo: PUC-SP. p. 7-28.
SIMMEL, Georg. 1989. Les grandes villes et la vie de l’esprit. Paris: Éditions Payot.