Versão em português do Journal de bord n˚ 1, « SARS-COV-2 em tour », Maria Helena, Brasil/França

A reportagem no último sábado declarava “[…] 3.310 novas contaminações do novo coronavirus em 24” (LE MONDE, 2020), um recorde depois de maio (mês do relaxamento do isolamento social), situação que mudou os planos para o fim do verão de diferentes viajantes em solo Francês, que tinham como origem ou destino a Grã-Bretanha, colocando em suspense o início do segundo semestre.

A testagem massiva e o baixo número de hospitalizações em curso garantem certa tranquilidade no acompanhamento do tour do SARS-CoV-2 e na multiplicação dos contágios, o que nesse momento não se faz sem uma revisão das regras: “uso obrigatório de máscaras” em espaços privados, mas também em espaços públicos (ruas com grande circulação de pessoas). Após o último final de semana (15 e 16 de agosto), o reforço do distanciamento social e do uso de máscaras tornaram-se, outra vez, regra em diferentes bairros de Paris, Bordeaux, Bouches-du-Rhône, Marseille, Nice, Rennes, Lille, La Rochele et Lyon (LE MONDE, 2020).

Máscaras obrigatórias em Paris
Fonte: Le Monde (ago. 2020).

O virus viaja sem cessar – propagando-se não apenas por gotículas de saliva, mas também por partículas suspensas no ar (os aerossóis) – e ele muda, transformando-se contínua e incessantemente em contextos altamente propícios: retorno às atividades nos espaços habituais trabalho, relaxamento do isolamento social, verão, viagens e convivência com diversas pessoas desconhecidas, em lugares com relevante concentração de pessoas que, a despeito da grave crise sanitária e socioeconômica ocasionada pela pandemia, buscam aproveitar livre e despreocupadamente as férias. Temia-se que em situações regulares de retomada das atividades laborais e cotidianas nas cidades houvesse um rápido e elevado crescimento dos contágios e uma segunda onda da pandemia. De fato, o aumento dos contágios vem sendo observado em espaços de trabalho e o cenário de crescentes mobilidades de lazer e turismo, inegavelmente, agrava o temor.

A progressiva retomada das atividades laborais, a iminência da retomada do semestre letivo e aulas presenciais, assim como a retomada do uso cotidiano de espaços públicos das cidades, ao que tudo indica, não será feita em segurança sem um juízo pessoal e de uma auto-crítica em relação às diferenças entre obrigação externa (heterocondicionada) e obrigação interna (autocondicionada) (ARENDT, 2009; CHAUÍ, 2008; WAICHMAN, 1997). 

As mudanças comportamentais impostas ao cotidiano da população de quase todo o mundo, por autoridades, agências de saúde e sanitárias, governos e mesmo pela pressão social, estiveram orientadas para a contenção do adoecimento de um vasto contingente de pessoas e o colapso dos sistemas de saúde. Apesar da pandemia ter explicitado que cada indivíduo “não é uma ilha isolada”, o contrabalanço entre o que pode ser considerado obrigação externa ou interna representa hoje um ponto nevrálgico para uma vida social e individual com qualidade, cidadã e democrática. As mutações do vírus são de uma habilidade adaptativa e em uma velocidade que o comportamento social humano não acompanha.

SARS-CoV-2 viajando em mutações e parte da população em férias

A circulação incessante do virus e ainda acentuada em países como Brasil, USA, Índia, Rússia, e África do Sul desenrolou um processo de transformação intensa em diferentes atividades, sobretudo no âmbito do lazer e do turismo. 

SARS-CoV-2 em seu tour
Fonte: Coronavirus Resource Center – Johns Hopkins University (ago. 2020).

Do ponto de vista dos turistas, segurança e integridade física deixou de ser um critério na escolha do destino de lazer e turismo apenas para os apaixonados pelo turismo de aventura e ecoturismo ou para os curiosos do dark-tourism. Entretanto, a transição entre a adoção de condutas de proteção individual (regra de distanciamento, máscaras e luvas) e o desenvolvimento de uma consciência da co-responsabilidade no uso dos espaços e no desenvolvimento da sociedade não se fez na mesma medida; e mais, as condutas são consideradas, ainda, um “protocolo temporário” indispensável apenas nos ambientes de “circulação ativa do novo coronavirus”.

Se de um lado a pandemia, como evento social, ocasionou drásticos impactos econômicos (crises econômicas, fechamento de empresas, demissões, rupturas e não pagamento de contratos, aumento do custo de vida etc.), acentuou problemas sociais e psicológicos (aumento do número de pessoas em situação de rua, exacerbação das desigualdades socioeconômicas, exclusões, miséria, violências, depressões, quadros de ansiedade etc.) e tornou visível práticas que há tempos precisavam de revisão, de outra parte, fomentou transformações que podem ser consideradas positivas nos ambientes de trabalho de negócios, escolares, de saúde, nos espaços públicos.

Pandemia e as mudanças no Produto Interno Bruto de países mais afetados
Fonte: UNCTAD (jul. 2020).

No contexto específico do turismo a crise é severa; a paralisação das atividades durante a pandemia com a respectiva redução da venda de produtos e serviços, desempregou milhares de trabalhadores. As empresas que conseguiram retomar suas atividades, o fazem dentro de um contexto delicado e não apenas no que se refere à revisão dos protocolos de limpeza e higienização dos espaços físicos. 

Pandemia e os impactos econômicos no Turismo
Fonte:WTTC (juin. 2020).

Situações-limite: o trem em pane e não há pânico

Um deslocamento para a cidade em que venho realizando pesquisas de campo, no início do verão e neste contexto de relaxamento das restrições de isolamento social, não se fez sem tensão peculiar às mobilidades. Para além das preocupações relativas ao contexto pandêmico, observo o quanto socialmente nos habituamos à uma relação de distanciamento com o meio ambiente. Tornou-se praticamente natural evitar e/ou reverter problemas “causados » pelas intempéries naturais com soluções que nos enclausuram em ambientes que fazem uso intensivo da tecnologia. Não desejo com isso afirmar que a tecnologia não tenham aportado mais agilidade, conforto, segurança às nossas experiências e atividades cotidianas, mas ainda projetam-se poucas soluções que colocam o ser-humano em relação de convívio e/ou dialógica com os sistemas ecológicos, possivelmente ambientalmente mais seguras, saudáveis e sustentáveis.

A viagem que deveria durar apenas algumas horas e com todos os protocolos adotados deveria ser bastante segura, tornou-se um caos, face a uma pane elétrica em todo o trem. A viagem começou no início da tarde, em um dia de verão, com temperatura média entorno dos 33˚ C e, uma hora após a partida, uma pane nos disjuntores do quadro de eletricidade do trem, ocasionou a parada imediata dos vagões no meio de uma via férrea expressa, no descampado de uma região rural – com elevada insolação – e o desligamento de todo seu sistema de climatização. Por medida de segurança sanitária todos os banheiros dos vagões foram interditados e, por segurança física, todas as portas dos vagões fechadas. O detalhe é que a confiança/fé na tecnologia não previu um projeto de um sistemas de circulação de ar alternativo, com janelas, para casos de pane como essa, situação que ganha outros tons em períodos de crise sanitária e de saúde pública.

A equipe de funcionários à bordo atualizava o status do problema e as medidas aventadas para sua solução aproximadamente a cada 20 minutos, mas após 30 minutos com o trem parado, gradativamente, os passageiros começaram a retirar as máscaras. As crianças e os adultos mais impacientes foram os primeiros e os funcionários, bastante constrangidos, de início apresentaram projeções de reversão mais otimistas do problema, o que mudou quase duas horas após a pane. A estratégia de atualização constante de informações parece apaziguar os ânimos, mas não reverte desconfortos vividos na carne. Com suor escorrendo pelo corpo, o ar saturado, o calor insuportável, a abertura das portas dos vagões teve que ser negociada por passageiros disciplinados, educadíssimos e com uma paciência invejável na argumentação. 

Parte dos passageiros aglomerou-se em frente às portas momentaneamente abertas, na tentativa frustrada de amenizar tanto os desconfortos físicos quanto às preocupações relativas à pandemia. Banheiros em alguns dos vagões também foram colocados em uso para situações emergenciais e começou uma tentativa de amenizar os problemas de desidratação, com distribuição de garrafas de água para os passageiros. Mas, para surpresa dos clientes, não foi embarcada quantidade de água suficiente para todos os passageiros no trem; ninguém nunca aventou uma situação como esta e a oferta de água foi bastante seletiva: crianças, idosos, pessoas que não estivessem se sentindo bem. Clamava-se por uma resposta disciplinada da parte dos clientes e a socialização dos prejuízos: apenas passageiros que não tivessem embarcado com bebidas à bordo deveriam solicitar à equipe uma garrafa de água e com isso, a contenção dos danos era socialmente operada pelos passageiros/clientes.

Ao longo do tempo, os profissionais à bordo começaram a constranger-se e ao invés de compartilhar informações pelos alto-falantes, passaram a visitar os vagões e falar pessoalmente com todos. Do início da parada até a chegada de um vagão que viesse em socorro do trem em pane, passaram-se quatro horas e as soluções encontradas foram: primeiro reestabelecer o abastecimento de energia e sistemas de climatização; depois de mais duas horas de espera, com o calor atenuado, retornar toda a composição até uma grande estação localizada 30 km antes do ponto da pane; e, por fim, transbordar todos os passageiros para um novo trem, que completaria o percurso até o destino final. A compensação, por parte da companhia de trens: lanches distribuídos aos passageiros e pedidos de desculpas.

Cheguei ao meu destino de trabalho com quase seis horas de atraso, exausta e com a certeza de que não estamos preparados apenas para enfrentar situações-limite como a pandemia, mas que os caminhos de desenvolvimento, mesmo com intenso uso de tecnologia, precisam reatar as relações dos seres humanos com o meio ambiente e sistemas ecológicos.

Referências

ARENDT, H. 2009. Que é Liberdade? In: ____. Entre o passado e o futuro. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, p. 188-220 (Debates; 64).

CHAUÍ, M. 2008. Culture et démocratie. Revista latino-americana de Ciencias Sociales, ano 1, n. 1, jun. 2018, Buenos Aires: CLACSO.

Coronavirus Resource Center Johns Hopkins University. 2020. COVID-19 Dashboard by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE). Johns Hopkins University (JHU): University of Medicine. Disponible en: < https://coronavirus.jhu.edu/map.html>. Access en: 18 ago. 2020.

Le Monde. 2020. Coronavirus en France: plus de 3 000. Nouvelles contaminations enregistrées en vingt-quatre heures. Paris: Le Monde. Disponible en: <https://www.lemonde.fr/economie/article/2020/08/16/de-nouvelles-regles-sanitaires-en-entreprise-proposees-d-ici-fin-aout-par-le-gouvernement_6049044_3234.html>. Access en: 16 août 2020.

UNCTAD. 2020. Coronavirus will cost global tourism at least $1.2 trillion.  Geneva, Switzerland: United Nations Conference on Trade and Development, 1 jul. 2020. Disponible en: <https://unctad.org/en/pages/newsdetails.aspx?OriginalVersionID=2416>. Access en: 18 août 2020.

WAICHMAN, P. 1997. Tempo livre e recreação: um desafio pedagógico. Tradução: Jorge Peres Gallardo. Campinas Papirus. (Coleção Fazer/Lazer)

WTTC. Recovery Scenarios 2020 & Economic Impact from COVID-19. Disponible en: <https://wttc.org/Research/Economic-Impact/Recovery-Scenarios-2020-Economic-Impact-from-COVID-19>. Access en: 18 août 2020. United Kingdom: World Travel & Tourism Council, 15 jun. 2020.

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