Há algumas hipóteses para as lógicas que estão por trás dos comportamentos dos turistas de Lyon. A largura das ruas e a presença de atrativos turísticos nelas influi na decisão de qual caminho percorrer, assim como, a rota mais curta para se chegar a um atrativo, também tem sua relevância. Após alguns meses, observo que alguns caminhos são mais utilizados e que algumas práticas destacam-se pela recorrência, muitas vezes estimuladas previamente por reforços, hábitos, costumes.
Nesse contexto de pandemia e é claro que estas observações estão diretamente vinculadas ao meu lugar de fala – uma pesquisadora originária de um país latino-americano, com grande mistura de povos, reconhecido pelo rótulo de ser hospitaleiro e caracterizado por relações amistosas – noto que os grupos de turistas pouco conversam entre si; as conversas entre integrantes de grupos distintos são raras. Poderia atribuir esse comportamento de introspecção à pandemia, mas comecei minhas observações de campo em Lyon em dezembro de 2019 e esses comportamento vem se repetindo desde então. Mesmo no maior evento cultural-religioso-turístico de Lyon – a Fête des Lumières -, quando a cidade recebe algo entorno de 2 milhões de visitantes, observei poucas interações e conversas entre pessoas que integram grupos distintos. E uma questão que tem origem nessa constatação: como a fricção, a relação e/ou os intercâmbios com o outro estimulam o desenvolvimento sociocultural e político?
Já tive ocasião de registrar e relatar um pouco desse comportamento na Enquête thématique n˚ 10 e adiciono aos apontamentos anteriores, a partir das observações sistemáticas realizadas desde julho em Lyon que, ao que parece, a medida que há um aumento da densidade e diversidade de turistas no espaço urbano, há um aumento – apesar de pouco expressivo – das conversas entre grupos.
O perfil dos turistas de Lyon é predominantemente de jovens e adultos e na temporada turística de verão em meio à pandemia foi possível observar que as famílias destacaram-se como o perfil de grupo na cidade – casais com filhos (crianças e/ou jovens), às vezes acompanhados dos avós, tios e/ou casais amigos. Os grupos de amigos, jovens e adultos também compuseram um público turístico marcante, mas em menor quantidade que os grupos de famílias. Poucos foram aqueles que optaram por viajar em solitário.
Notei uma predominância de visitantes franceses, seguidos dos turistas ingleses, alemães e outras nacionalidades européias; mas cabe registrar que havia uma baixa presença de italianos (normalmente frequentes em Lyon, dada a proximidade da cidade com a fronteira italiana) e espanhóis. Também observei pouca presença de asiáticos (japoneses, chineses, coreanos e indianos), africanos e latino-americanos.
Dessa forma, a possível facilidade de comunicação entre turistas, majoritariamente franceses e falantes do mesmo idioma, não estimulou conversas fortuitas nos espaços dos centro histórico salvaguardado como patrimônio. Mas há exceções; e em quais situações a conversa surge espontaneamente? Quando crianças integrantes de grupos distintos resolvem interagir; quando há algum problema e alguém decide ajudar; ou ainda quando os grupos passeiam com animais de estimação – o encontro dos “bichanos” sempre gera algum tipo de interação entre os animais e, com alguma frequência, mesmo por meio de olhares e acenos com a cabeça, entre seus donos.

Fonte: desenvolvimento próprio (jul. 2020).
Trajetos no espaço turístico patrimonial
Esses turistas/visitantes são vistos em percursos de lazer, em maior quantidade, em algumas partes dos espaços turísticos da cidade, notadamente o eixo da Rue de la République, na Place des Terraux e nos quarteirões que conservam patrimônio urbano do período medieval e renascentista (edifícios, ruas, passadiços “secretos”, fontes de água etc.), na base da colina do Fourvière. Parte destes turistas/visitantes chegam a visitar a Basílica no topo da colina e uma parte mais reduzida, também visita a colina do Croix-Rousse, os estúdios dos irmãos Louis e August Lumières, os parques, os bairros na margem esquerda do Rio Rhône, com forte presença de imigrantes provenientes da África e do Oriente (provenientes do Oriente Médio, Ásia e países africanos).
O acesso ao espaço urbano salvaguardado como Patrimônio da Humanidade, que também assume a função de relevante espaço turístico, se dá por diferentes meios de transporte (trem, metrô, ônibus, tramway, veículos de passeio individual, motos, bicicleta, patinete, ônibus turístico, embarcações e veículos turísticos rodoviários que se assemelham à trens sobre rodas) e, majoritariamente, partindo da porção leste do território da cidade. A partir do centro urbano e da margem esquerda do rio Rhône, visitantes e turistas que se deslocam à pé ou fazendo uso de mobilidades de superfície terrestre, acessam o espaço turístico patrimonial, conformado por parte da Presqu’île e das colinas do Fourvière e Croix-Rousse, cruzando a passarela du Collège ou uma das seis pontes (Pont de Lattre de Tassigny, Pont Morand, Pont Lafayette, Pont Wilson, Pont de la Guillotière e Pont de l’Université), que conectam o continente a margem esquerda do Rhône à península da Presqu’île. A maior parte do fluxo turístico tem seus deslocamentos concentrados nos acessos localizados entre a Pont de la Guillotière e Pont Lafayette.
O acesso da Presqu’île à base da colina do Fourvière é majoritariamente feito pela Pont Bonaparte, Passarela du Palais de Justice, Pont Alphonse Juin e Pont La Feuillée (a menos frequentada de todas). No interior do espaço patrimonial há um percurso bem marcado pelo qual move-se grande parte dos turistas e há uma intensidade de fluxo maior, que se assemelha a uma rota urbana, percorrida conscientemente – percurso anteriormente definido – ou despropositadamente, e talvez, em alguma medida, reforçados pelo histórico de trajetos cotidianos nas cidades de origem. As pontes que conectam o espaço patrimonial com o restante da cidade (onde está instalada a maior parte da oferta hoteleira de Lyon), assim como estações de metrô, são pontos de início dos percursos.

Fonte: ONLY LYON (jan. 2020).
No trecho entre a Place Bellecour e a Place de la Comédie na Rue de la République forma-se um grande corredor, intensamente utilizado pelos turistas, que é ponto de partida para a cidadela medieval-renascentista. Os turistas que partem desse trecho formam diferentes grupos, que percorrem diferentes caminhos, subdivindo-se em fluxos menores: um fluxo que percorre toda a Rue de la République acessa a Place des Terraux ou Place Bellecour e atravessa o rio Saône usando, respectivamente, a Pont La Feuillée ou Pont Bonaparte; outro fluxo, também expressivo, originado na Rue de la République, passa pela Place des Jacobins e transpassa o rio Saône cruzando a passarela de pedestres du Pallais de Justice ou as pontes Bonaparte e Alphonse Juin; por fim, desse grande corredor – Rue de la République – também se desprende um fluxo, que acessa a Rue Genette e atravessa o rio Saône pela Pont Alphonse Juin. O acesso ao centro histórico medieval-renascentista, localizado na base da Colina do Fourvière se faz, portanto, de maneira distribuída. No interior dessa área turística, por sua vez, estrutura-se um outro corredor “turístico” pelo qual passa o intenso fluxo de visitantes, conformado pela Rue Saint-Jean e Rue du Doyenné. Creio que se pudéssemos olhar do alto os deslocamentos dos visitantes/turistas pela cidade, tais mobilidades estariam concentradas nesses corredores que se formam entre a Rue de la République, a Rue Saint-Jean e a Rue du Doyenné.

Fonte: ONLY LYON (jan. 2020); adaptação da autora (août, 2020).
Há também um eixo de visitação que se origina na colina do Croix-Rousse, com os visitantes/turistas que estão alojados em meios de hospedagem instalados nessa região, mas ele é bem menos expressivo que os fluxos que vem da região leste da cidade, onde estão o centro urbano mais movimentado e um grande número de meios de hospedagem.
É bem verdade que também há turistas nos bairros em que estão instaladas as estações de trem Part-Dieu e Perrache, assim como em suas imediações (centro urbano e bairro da Confluence, respectivamente), mas os percursos turísticos nesses espaços, além de reduzidos, não são notados com clareza, já que se mesclam com os residentes.
Os percursos feitos para regiões mais afastadas ou íngremes – caso das colinas do Fourvière e Croix-Rousse – são em sua maioria feitos com uso de transporte coletivo; os grupos que percorrem à pé as ruas, parques, jardins, escadarias e atrativos entre a base do Fourvière e a Basilique Notre-Dame de Fourvière ou a Place des Terreaux e os Pentes de la Croix-Rousse (mirante e platô no qual estão localizados diferentes atrativos), é bem inferior.

Fonte: desenvolvimento próprio (ago. 2020).
Redução de circulação de pedestres visitantes/turistas também é notada na parte sul da Presqu’île, no recém requalificado bairro da Confluence – que atualmente abriga região portuária, um moderno Shopping Center e o grande Musée Confluence – e nos eixos viários que adentram a cidade: Cours Lafayette Rue Servient, Cours Gambetta, Avenue Berthelot. Essas grandes ruas revelam gradualmente espaços de urbanização mais recente, arquitetura com outras feições patrimoniais e ambientes socioculturais pouco frequentados pelos visitantes/turistas. Bairros residenciais com forte presença de imigrantes asiáticos, africanos e do oriente-médio; mercados e comércios populares; assim como os esforços de política pública urbana voltados à integração da cidade com espaços verdes (notadamente o Parc de la Tête d’Or e o Parc de Gerland, nos extremos nordeste e sudeste da região central de Lyon, acessíveis pelas avenidas que margeiam o rio Rhône) não integram os roteiros de visita de lazer da maioria dos visitantes/turistas, quer seja pelo pequeno período de permanência, pela adesão aos meios de transporte coletivos como forma de mobilidade, pelo olhar direcionado/cultivado por guias turísticos e produção bibliográfica especializada, longamente discutida em obra seminal de Urry (2001).

Fonte: desenvolvimento próprio (ago. 2020).
Outra questão relevante: embora a importância comercial de Lyon caracterize-se como uma permanência histórica, a presença predominante dos fluxos turísticos em corredores comerciais, explicita longas caminhadas com uma mistura da apreciação sociocultural “superficial” da cidade visitada e algum consumo. Há um corredor que se forma em rua marcada pela presença de grandes lojas e marcas internacionalmente conhecidas (na Rue de la République) e há ainda outro turístico, que se destaca em ruas com lojas que, em alguma medida dialogam com a história das atividades produtivas local (Rue Saint-Jean e Rue du Doyenné, na base do Fourvière), destinado a venda de produtos para turistas (comércio de souvenirs, gastronomia local, venda de produtos confeccionados com seda e outros tipos de tecido, com estreita alusão à importância histórica da produção da seda e da tecelagem no município).
Estes corredores turísticos estruturam-se e reforçam-se a despeito dos esforços que buscam estimular a fruição diversificada de Lyon, por parte das instituições responsáveis pelo desenvolvimento turístico oficial (visitas guiadas e ônibus turístico) das empresas especializadas que ofertam serviços privados de visita turística na cidade (agencias de viagens e turismo, empresas envolvidas com mobilidades diversificadas e tours comentados – embarcações, trenzinho turístico e triciclos parecidos com tuk-tuks).
Os grupos de visitantes/turistas nesses “corredores/rotas turísticas” podem apresentar comportamentos caracterizados pela busca por exploração, status e/ou parcerias (KOCK, JOSLASSEN, ASSAF, 2018), mas dentro de um quadro de costume e/ou simpatia pelos intensos e frequentes estímulos oferecidos aos sentidos pelas grande cidade. Tais estímulos são marcados por rápida e ininterrupta alternância entre impressões internas e externas, que se impõem aos sujeitos e não clamam pela ação da consciência, como assinalado por Simmel (2013). Considerando ainda os apontamentos de Simmel (2013), esses grupos de visitantes/turistas parecem um pouco alheios ao poder do patrimônio sociocultural de Lyon; de um lado porque, como pondera o autor, podem escamotear uma atitude de proteção e resistência ao desenraizamento de suas referências, de sua noção de liberdade e de sua realidade sociocultural, mas também, de outro lado, porque escolhem usar uma parte do tempo de sua estada em visitas ao centro histórico patrimonial, embora pareçam não desenvolver uma relação de envolvimento ou desvendamento intelectual/sociocultural.
Experiência turística para além do consumo
De todas as observações feitas não é possível afirmar que a experiência turística resuma-se a uma relação superficial e ao consumo de produtos, serviços e lugares. Embora de maneira não tão expressiva, mas com certa regulariadade, observo grupos de turistas que decidiram mover-se pela cidade em grupos de visitas guiadas (especialmente no período da manhã). Também há turistas portando guias turísticos especializados – comportamento que denuncia um esforço intencional para obtenção de maior expertise e desenvolvimento intelectual/cultural, e que pode levar a maior envolvimento com espaço visitado e relatos pautados por maior familiaridade. Os turistas com estes perfis, considerando os estudos de Kock, Josalssen e Assaf (2018), estão mais alinhados com a busca por novidades (“exploradores »), por reforço das relações de afiliação/pertencimento, assim como apresentam comportamentos mais sensíveis ao espaço e a seus elementos constituintes. Exercitam, por exemplo, sua individualidade e autonomia, elaborando significados e sentidos a partir das interfaces com a realidade exterior e com conteúdos supraindividuais, sobretudo tendo em vista o apontamento de Simmel (2013, p. 47) de que manifestações exteriores, mesmo as mais banais, estão de alguma maneira ligadas por linhas diretrizes às decisões que dizem respeito aos sentidos e ao estilo de vida.
Outrossim, faz-se necessário também considerar que, a partir dos estudos relativos às formas de identificação desenvolvidos por Hall (2005) e Clifford (2000) é possível presumir que um turista possa adotar, ao longo de sua viagem, de maneira intencional ou mesmo acidental, diferentes tipos de comportamentos, que os filiam, em cada situação de análise/momento de sua viagem, a um diferente perfil de turistas.
Por fim, faz ainda sentido reconhecer que hábitos e costumes de uso do espaço urbano e de uso do tempo livre/liberado, reiteradamente reforçados nos espaços urbanos de vida cotidiana, com o passar do tempo, imprimam um modus operandi nas práticas com este caráter, no tempo de lazer e nas experiências turísticas, ainda que em ambientes urbanos bastante distintos daqueles correntemente “frequentados”.
Referências
CLIFFORD, J. 2000. Cultures itinérantes. In: ARANTES, A. A. (Org.). L’espace de la diference. Campinas, SP: Papirus, p. 51-79.
HALL, Stuart. 2005. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.
ONLY LYON. 2020. Je découvre Lyon – Brochures en téléchargement. Disponível em: <https://www.lyon-france.com/J-organise-mon-sejour/lyon-pratique/telecharger-les-documentations-d-onlylyon-tourisme-et-congres>. Acesso em: 10 set. 2020.
SIMMEL, G. 2013. Les grandes villes et la vie de l’esprit – suivi de Sociologie des sens. Paris: Étidions Payot & Rivages.
URRY, J. 2001. O olhar do turista: lazer e viagens nas sociedades contemporâneas. São Paulo, Studio Nobel; SESC.