Versão em português da Enquête thématique n˚ 16, “Hospitalidade! Mas e a pandemia?”, Maria Helena, Brasil/França

Há alguns meses desenvolvo pesquisas de campo em Lyon e, como parte das estratégias, decidi variar os meios de hospedagem que escolho para minha estada, bem como os bairros nos quais me hospedo, ao longo das semanas.

Reitero os resultados de pesquisa realizada por Den Hoed e Russo (2017) de que, a depender do lugar em que se hospeda em uma cidade, as experiências dos turistas mudam. Sim, há um espaço turístico mais ou menos delimitado em toda cidade – aquele que concentra os atrativos turísticos de um lugar – e que também é o mais promovido, dada sua apresentação nos mapas turísticos presentes na folhetaria distribuída aos turistas.

Por caminhos diferentes, os turistas acessam o espaço turístico, ao mesmo tempo que descobrem e “convivem » com lugares distintos da cidade – com ambiências e dinâmicas particulares -, que estão nos espaços entre sua hospedagem e o próprio espaço turístico.

De outro lado, a escolha por hospedagem em sistemas de economia compartilhada (hostels) acabou revelando surpresas desagradáveis. Esse tipo de estabelecimento de hospedagem, em uma primeira análise ou mesmo em um primeiro momento de grandes transformações no mundo das viagens, não está tecnicamente, operacionalmente e gerencialmente preparado para funcionar neste momento, considerando as medidas que precisam ser adotadas em decorrência da pandemia.

Implicações nas escolhas

O quê, na prática, ocorreu a partir de minhas escolhas?

Os preços de hospedagem, assim como os de moradia, variam de um lugar para outro e a escolha de variar hospedagens pela cidade acabou me fazendo voltar algumas vezes para o 2˚ arrondissement, ou seja, para o bairro renovado da Confluence, que ofereceu melhores preços para diárias de hospedagem, entre julho e setembro (por alguma razão, as promoções estiveram concentradas nos meios de hospedagem dessa região).

A escolha de variar os tipos de estabelecimento de hospedagem, em princípio, foi feita considerando as possibilidades de observação das relações entre viajantes e destes com a cidade. O apelo à convivência e intercâmbios sociais nos hostels também pesou nessa decisão. Confesso que relutei um bocado em escolher esse tipo de estabelecimento como opção de hospedagem, por razões óbvias vinculadas à pandemia. Esperei um pouco mais de um mês acreditando que, nesse tempo, seus gestores teriam adotado procedimentos adequados para o funcionamento de meios de hospedagem na pandemia, seguindo orientações governamentais e, também, àquelas internacionalmente estabelecidas. Na prática, o discurso mudou, mas o quotidiano no interior dos hostels, mudou muito pouco.

Até agora hospedei-me em dois hostels: um localizado no perímetro salvaguardado como Patrimônio Mundial da Humanidade e outro, em seu entorno. Vale ressaltar que, apesar da presença de grandes casarios e seu potencial para instalação de empreendimentos que favoreçam pouca densidade, eles são poucos nesse perímetro protegido. Ainda, segundo fala de uma guia de turismo veterana em Lyon, o segmento de hospedagem, nesse espaço, tem se mostrado interessante para oferta de outros tipos de produtos de economia compartilhada. 

Um pouco mais de ar!
Fonte: desenvolvimento próprio (ago. 2020).

De partida, os hostels analisados apresentam limitações do ponto de vista estrutural e técnico: as janelas garantem o único sistema de circulação de ar nos dois estabelecimentos em que me hospedei e, na maioria dos casos, esses estabelecimentos funcionam em edifícios de pequenas dimensões e com disposição de mobiliário que favorecem uma grande densidade de pessoas, em um mesmo espaço (3 beliches, 6 camas, 6 pessoas em 19m²). Os gestores desses estabelecimentos, sem pudor algum, utilizam a ideia da informalidade e sociabilidade da economia compartilhada/consumo colaborativo para empreender ações que maximizem lucros, descuidando da segurança sanitária de todos que lá estão hospedados ou em atividade profissional: trabalham para que os quartos sejam ocupados em sua capacidade máxima, desrespeitando a regra de distanciamento fisico de 1 metro entre as pessoas. As áreas comuns tem espaço físico reduzido e não comporta a presença simultânea de boa parte dos hóspedes, especialmente mantendo a distância de 1 metro entre cada um.

Dormindo densamente
Fonte: desenvolvimento próprio (set. 2020).

As práticas de higienização continuam as mesmas; talvez tenha havido alterações na frequência com que as higienizações são feitas e nos tipos de produtos utilizados (sabões, desinfetantes, soluções distintas de alcool – álcool gel ou mesmo líquido), mas o roteiro do que frequentemente limpar, mudou pouco. Maçanetas, carpetes de corredores, portas, janelas, estruturas de camas, armários de uso dos hóspedes (no interior dos quartos e nos espaços/cômodos repletos de armários para guarda de bagagens – left-luggage locker), cadeiras e mesas de áreas comuns, estofados, grandes almofadas (puff) etc., não são limpos e desinfetados com regularidade. Além disso, a roupa de cama limpa é colocada sobre as camas muito antes do hóspede instalar-se; às vezes passa dias sobre a cama sem que haja um hospede para utilizá-la, enquanto os demais hospedes já instalados no quarto circulam e usam o espaço. Há falta de manutenção dos espaços dos banheiros, que em sua maioria são de uso coletivo: ralos entupidos; baixa frequência de substituição de papéis higiênicos e papel toalha para secar as mãos; lixeiras sem pedal, que obrigam o usuário a manipular a tampa; água empossando no espaço das duchas, por ausência de ralos que permitam o escoamento da água etc.

Quando o item de análise é o comportamento das pessoas, os problemas ampliam-se, porque se somam aos problemas estruturais e de procedimentos de higienização. O “astral » de hospedar-se em um espaço de uso compartilhado, que incentiva a convivência e os intercâmbios sociais permanece quase inalterado, salvo alguns momentos em que as pessoas, que se conheceram no hostel, conversam usando máscaras. Na maioria das vezes, esses contatos entre estranhos e conversas desenrolam-se nas áreas comuns dos hostels, usados inclusive pelo público de passantes (área de alimentação que, às vezes, conta com um tipo de serviço similar ao de cafeteria e de pequeno restaurante), em momentos nos quais as pessoas estão fazendo suas refeições, trabalhando, estudando ou lendo informações em seus computadores portáteis. Nessas situações, esses “hóspedes” estão majoritariamente sem máscaras.

Tanto nas áreas comuns quanto nos dormitórios, o uso da máscara é obrigatório, em razão da densidade de pessoas no mesmo lugar, mas parece que a fadiga relacionada ao tempo de seu uso (em todos os momentos do dia nas ruas das cidades, em estabelecimentos comerciais e de ensino e, ainda, nos espaços comuns dos meios de hospedagem), gera um comportamento delicado: sem exceção, quando entram nos ambientes dos dormitórios, os hóspedes retiram as máscaras. Parece que a entrada no ambiente de privacidade licencia um momento da vivência da liberdade plena, do “eu quero, desejo e faço” – uma extrapolação do eu interno, independentemente do contexto ainda demandar uma forte mediação do eu interior com o eu social. Os trajetos entre dormitório e banheiro, muitas vezes, são feitos sem uso das máscaras, assim como, seu uso é diminuto nos banheiros. 

Outra questão flagrante: a manutenção das janelas abertas não é feita sem conflitos entre os hospedes dos dormitórios. O barulho da rua (porque vários hostels estão instalados em áreas urbanas repletas de bares e restaurantes), o barulho da chuva ou o perigo potencial de que parte da água entre no quarto, a presença de mosquitos, a claridade/luminosidade que vem do exterior, o frio e outros inumeráveis argumentos – que variam segundo demandas bastante pessoais e particulares – são manifestos para insistir no fechamento das janelas. Depois que o “chato” que reitera o pedido de que a janela permaneça aberta, várias vezes ao longo do dia, começa a dormir, tem sempre um que levanta e fecha a bendita janela. Com isso, elimina-se a circulação de ar nos dormitórios e todos dormem tranquilos e descansados…. 

« Abre a janela meu amor, abre a janela… »
Fonte: desenvolvimento próprio (set. 2020).

As demandas particulares e os desconfortos amplificados por problemas estruturais preexistentes, desconectados das demandas de vigilância na pandemia, tornam-se mais ameaçadores e desconfortáveis do que as reais possibilidades de contágio. É bom lembrar que o comportamento de busca por uma vida social mais intensa, no interior dos hostels, assim como nos bares, restaurantes, casas noturnas e espaços públicos da cidade, implica a ampliação da rede de contatos desses hóspedes, durante sua estada na cidade e que a cadeia de contágios se propaga exponencialmente. E é necessário destacar que viajantes, de diferentes faixas etárias apresentam esses comportamentos – não é o caso exclusivo de jovens viajantes.

Há um aumento razoável do tempo dedicado à vida social nos hostels; o espaço e tempo de vida privada é bastante reduzido nesse tipo de meio de hospedagem e comportamentos característicos de atendimento das demandas privacidade, aleatórios nos tempos e espaços, tensionam relações nos espaços e contextos de vida social. 

Já do ponto de vista gerencial, os profissionais que trabalham nesse tipo de meio de hospedagem afirque “não estão lidando com crianças, no hostel só há adultos”! A garantia da segurança sanitária, na percepção desses profissionais, sobretudo dos que gerenciam as rotinas do estabelecimento, está associada à: instalação de suportes para alocação de frascos de álcool gel, a fixação de cartazes com regras para convivência em tempos de pandemia (geralmente material informativo fornecido pelas autoridades governamentais), a divulgação de que eles adotaram os procedimentos recomendados pelas agências sanitárias (na página da internet do empreendimento) e o lembrete, no check-in, de que o uso da máscara é obrigatório nos espaços comuns. Ninguém reitera, verbalmente e ao longo do dia, a necessária adoção dos comportamentos que reduzem as possibilidades de contágio; os hostels funcionam como paraísos de liberdade…. E quando esses profissionais são questionados por sua inação face aos comportamentos de risco, a frase “je suis désolé(e)”, seguida de “estamos fazendo todo o possível para nos adaptarmos a esse novo modo de vida, em pouco tempo” (e olha que, aqui na França, as medidas de segurança estão sendo adotadas desde março!), parecem ser suficientes, na percepção deles, para atenuar a exposição das pessoas aos riscos reais de contágio e adoecimento, com todos os desdobramentos que vem sendo exaustivamente explorados pelos meios de comunicação de massa, inclusive com todo o sensacionalismo que é peculiar em boa parte destes ….

De que adianta todo o empenho de diferentes outros estabelecimentos de hospedagem, de estabelecimentos de alimentos e bebidas, de mercados, drogarias, padarias entre muitas outras instituições em funcionamento, que reiteram verbalmente e incansavelmente o uso das máscaras e álcool gel – desde a porta do estabelecimento -, em alguma medida contribuindo para a retomada das atividades citadinas com o mínimo de segurança, se de outro lado, há estabelecimentos que atuam com tanta displicência?  

Uma simples mudança de estratégia nos procedimentos de pesquisa desembocou em um sem fim de questões, relacionadas ao desenvolvimento do turismo em tempos pandêmicos e pós-pandêmicos. Todavia, por quais caminhos passarão os futuros percursos de desenvolvimento da vida social e da cidadania?

Confesso que minha irritação com os problemas com os quais me confrontei, o descaso dos funcionários e gestores dos hostels, me fez atrasar a escrita deste texto. Estar implicado na situação gera não apenas uma visão de dentro da situação de análise, com uma riqueza de detalhes para descrição e análise, mas também, em situações-limite como estas, uma instabilidade de estado de espírito que precisa ser apaziguada para uma leitura mais fria dos problemas e/ou questões, conferida por um certo distanciamento temporal e abrandamento das emoções.

Referências

DEN HOED, W; RUSSO, A. P. 2017. Professional travelers and tourist practices. Annals of Tourism Research, 63, p. 60-72.

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