Chove! E adivinhem o que acontece nos espaços públicos das cidades? Quem pensou que eles ficariam vazios, enganou-se. As ruas não estão repletas de pessoas, mas tem sempre um público resistente e mascarado, com ou sem guarda-chuvas, perambulando pelas ruas. “Ah, mas são turistas!”. Não, não é verdade; em sua maioria são residentes.

Fonte: acervo da autora (set. 2020).
As temperaturas despencaram em razão de frentes polares que, sucessivamente, deslocam-se do polo norte e atravessam o território francês de noroeste em direção sudeste desde a semana do dia 21 de setembro, inclusive, provocando antecipada e vigorosa precipitação de neve nas montanhas dos Alpes (divisa da França com a Itália). As máximas entorno dos 30 graus da semana do dia 10 setembro, não passaram dos 13 graus celsius no sábado, 26 de setembro. O frio e a chuva fina que insistiu em cair (desde a madrugada do domingo 20 de setembro) não espantaram citadinos e turistas das ruas da cidade. Segundo o calendário, presencia-se a entrada do outono, mas na prática, o clima é mesmo de inverno.
Lyon é uma cidade que, verdadeiramente, apresenta uma dinâmica de vida urbana intensa. A quantidade de pessoas nas ruas aumenta substancialmente ao longo do dia, nos períodos de interrupção das chuvas; citadinos deslocam-se em direção às prosaicas atividades cotidianas de abastecimento e compras no comércio instalado na Rue de la République (comércio varejista de vestuário, calçados e lojas especializadas em produtos para residência; perfumaria; papelaria; informática e tecnologia, etc.), assim como com destino aos encontros sociais e experiências gastronômicas. Entretanto, há também uma quantidade relevante de deslocamentos motivados por passeios no espaço urbano, visitas aos equipamentos culturais e prática de atividades físicas (mesmo em períodos chuvosos).

Fonte: acervo da autora (set. 2020).
No final de semana de 26 e 27 de setembro, por infelicidade do destino – dadas as condições climáticas – , estava programada a suspensão da livre circulação de veículos em ruas de uma parte do centro histórico, visando fomentar e valorizar o uso dessa área por pedestres. No sábado, citadinos e turistas tomaram os espaços públicos, abrigando-se em estabelecimentos de alimentos e bebidas, estabelecimentos comerciais, em equipamentos culturais e atrativos turísticos, nos poucos momentos de chuva.
Já no domingo, dia em que a chuva foi mais persistente, notei uma redução do número de pessoas nas ruas – não muito relevante se comparada com a quantidade de pessoas do dia anterior; as pessoas ficam menos tempo expostas às intempéries climáticas nos espaços públicos abertos, mas o clima não parece ser um impedimento para sair de casa e descobrir ou descobrir-se em espaços de uso coletivo na cidade. O domingo foi mesmo agitado no Museu de Arte Moderna! Foi possível notar uma quantidade considerável de visitantes em suas salas de exposição e, considerando a fala de uma funcionária da instituição, que conversava informalmente com uma de suas colegas, o domingo é o dia de maior visitação, fato que não permite atribuir esse aumento de visitantes às condições climáticas do dia: P1: “Il y a du monde!” (havia uma preocupação implícita na fala relacionada aos contágios do coronavírus) ; P2: “C’est dimanche”, responde a colega, erguendo as mãos na altura dos ombros e sinalizando com um gesto que não havia muito o que fazer 🤷🏻♀️

Fonte: acervo da autora (set. 2020).
Minha surpresa ao ver as ruas tão movimentadas, mesmo com a chuva, aguçou minha curiosidade e levou-me a permanecer caminhando pela cidade ao longo de todo o sábado, domingo, dias e semanas subsequentes de frio e chuva. Não se tratava da surpresa ao ver muitas pessoas usando o espaço público para atividades de lazer em dias chuvosos, porque esse comportamento seria esperado e a quantidade de pessoas nas ruas varia em relação direta com o grau de população absoluta (quão populosa é) e de densidade populacional (quão povoada é). Também seria esperado que turistas hospedados na cidade saíssem às ruas, ignorando as condições climáticas, buscando aproveitar sua programação de viagem, dado que há uma clara redução na quantidade de dias de viagem nas mobilidades de lazer, nas últimas décadas.
A surpresa estava relacionada a considerável ocupação dos espaços públicos, majoritariamente por residentes e, sobretudo, por seu comportamento de caminhada vagarosa pelas ruas – nos espaços públicos abertos -, como quem desfruta confortavelmente um lugar. Eram pessoas de todas as faixas etárias, sexos, a maior parte reunida em pequenos grupos, transitando despreocupadamente e ainda não é possível afirmar que esse comportamento, nesse momento de brusca mudança climática que caracterizou a passagem do verão para o outono em 2020, deva-se à inércia térmica e de hábitos que caracteriza os comportamentos humanos (o organismo e os comportamentos precisam de algum tempo para adaptar-se às novas condições ambientais e tendem a manter seus comportamentos prévios, por um pequeno período, mesmo com as mudanças externas).
Espaço público: estímulos comedidos para estar e usar
É possível que essa dinâmica de uso do espaço urbano decorra de uma longa trajetória de fomento ao uso do espaço público de Lyon no tempo disponível/livre. Programas de atividades em espaços públicos da cidade (socioculturais, esportivas, de lazer); ações e políticas de valorização de equipamentos culturais e de lazer (incluindo praças e parques), públicos e privados; promoção de eventos nos finais de semana e também de duração semanal; estímulo às atividades ao ar livre, mediante uso de bicicletas e demais meios alternativos de mobilidade (patinetes, skates etc.); e, ainda, grandes eventos com forte apelo turístico (Tour de France, Fête des Lumières, Festival Lumière etc.), têm sido sistematicamente implementados ao longo das últimas décadas. Cidadãos residentes vem sendo priorizados como destinatários de várias dessas ações e os turistas, consequentemente, desfrutam de uma oferta ampliada de opções de atividades, ao longo do ano, já que também podem participar de atividades a priori promovidas para o público residente.
Ironicamente, neste ano, a retomada da normalidade de grandes eventos e o incentivo ao desenvolvimento do turismo na baixa temporada turística, foi celebrada com a realização do Tour de France. Ironicamente porque o evento, organizado por gestores e instituições públicas, reuniu um grande público em situações nas quais era impossível manter o distanciamento físico recomendado em tempos de pandemia e em momento no qual há intensa demanda, por parte dos mesmos atores, para manutenção de distância física de pelo menos 1 metro entre as pessoas, além de outros comportamentos recomendados para redução da velocidade com que coronavírus se propaga. Entretanto, a manutenção do evento e a confirmação da participação de Lyon como cidade sede na rota da competição e do turismo esportivo, permitiu que a cidade tirasse proveito de um potente marketing espontâneo, salutar em período de crise econômica tão delicada como a provocada pela pandemia, incrementando sua visibilidade, competitividade e capacidade de atração de recursos, turistas e empresas.

Fonte: acervo da autora (set. 2020).
Centenas de pessoas aglomeraram-se nas ruas, ao longo do trajeto pelo qual passariam ciclistas competidores, equipes de apoio, patrocinadores, organizadores, equipes responsáveis pelo marketing etc., especialmente no dia de chegada (12 de setembro). A retomada da competição, ao meio dia do dia 13 de setembro no Parc de Gerland, momento marcado para a largada da etapa 15, inversamente, foi acompanhada por um público bem reduzido; a localização e o horário do evento, provavelmente, favoreceram a redução do público.

Fonte: acervo da autora (set. 2020).
A esse evento, no final de semana subsequente (19 e 20 de setembro), foi realizada a Jornada de Patrimônio, que fomentou a realização de diversas atividades de lazer, de caráter histórico e cultural pela cidade e região metropolitana, reforçando o estímulo de uso do espaço urbano, de seu patrimônio cultural e arquitetônico, além de seus equipamentos culturais.

Fonte: acervo da autora (set. 2020).
O terceiro final de semana de setembro (26 e 27 de setembro) foi novamente um período de grande animação, arrefecida apenas pelas baixas temperaturas do clima. No fim do mês, a cidade implementou programa de uso exclusivo de pedestres de uma parte do sítio histórico salvaguardado como Patrimônio Mundial da Humanidade, ação alinhada com políticas públicas que vem fomentando a redução do número de veículos automotores no espaço urbano central da cidade, assim como o incentivo ao uso de meios de mobilidade coletivos, de massa (ônibus, trens, tramway, metrôs) e alternativos (bicicletas, patinetes, skates, patins etc.), visando enfrentamento dos impactos dos congestionamentos e poluição atmosférica.

Fonte: acervo da autora (set. 2020).
O terceiro trimestre, por sua vez, foi também inaugurado com celebrações. A realização do Festival Lumière, grande evento cultural e de entretenimento, movimentará o cotidiano da Região Metropolitana de Lyon entre 10 e 18 de outubro, com projeções cinematográficas em 35 salas, distribuídas por toda a região. O Centro Histórico, em particular, abrigará uma programação de projeções em oito salas, concentradas no 1˚ e 2˚ arrondissements.

Fonte: desenvolvimento próprio; Institut Lumière (oct. 2020).
A despeito das críticas às medidas do setor público para contenção dos contágios do coronavírus e retomada tanto progressiva quanto controlada da “vida normal” das cidades, dos diferentes segmentos de atividades e setores econômicos, durante a pandemia, uma parte das ações de incentivo ao uso dos espaços públicos urbanos e equipamentos culturais foi mantida em Lyon, no segundo semestre de 2020. Em um período de ações vistas como paradoxais, dada a seletividade que vem presidindo a definição do escopo das restrições, nem todos os eventos permaneceram no calendário da cidade: a Foire de Lyon (secular feira comercial), o Pollutec (salão internacional destinado às discussões de soluções ambientais para o desenvolvimento da indústria, da cidade e de seus territórios), a Bienal de Arte Contemporânea, a Bienal de Dança e vários outros eventos, de diferentes proporções, foram cancelados.
A boa notícia é que, independentemente das ações que estimulam usos do espaço urbano e patrimonial, a presença marcante dos cidadãos nas ruas, praças, parques e equipamentos culturais, em contextos de fruição do tempo disponível e livre, mesmo em tempos de pandemia, explicita relações de pertencimento, de valorização e mesmo de defesa tácita da liberdade e do espaço público, enquanto ambiente de convívio e desenvolvimento social.
Ações que em algumas circunstâncias assemelham-se à condutas de resistência aos constrangimentos e limitações impostos na conjuntura da pandemia, comunicam valores, aspirações e significados cotidianamente forjados por cidadãos, a respeito da cidade e da vida urbana, assim como, paulatinamente, alicerçam a conformação de dinâmicas e ambientes urbanos diversos, coletivos, favoráveis ao exercício da cidadania e às mediações entre a liberdade, o público e privado. Exemplo disto são as centenas de grupos de amigos e familiares que saíram às ruas para socializar e compartilhar refeições no dia em que passaram a vigorar novas e mais restritivas regras de funcionamento de bares, restaurantes e espaços para práticas esportivas (sábado, 10 de outubro), permanecendo discretamente nos estabelecimentos de alimentos e bebidas, mesmo após o horário definido para o encerramento das atividades – 22 horas.

Fonte: acervo da autora (out. 2020).
Não parecia que o Centro Histórico estava movimentado, mas as mesas no interior dos restaurantes estavam praticamente todas ocupadas.

Fonte: acervo da autora (out. 2020).
Concomitantemente a valorização da liberdade, do lazer, da socialização e do uso dos espaços públicos, potencializavam a recuperação dos diversos pequenos negócios do setor de alimentação, instalados na perímetro urbano salvaguardado como patrimônio. Tais comportamentos concretizam limites às fabulações associadas ao coronavírus e a pandemia, levando inevitavelmente a reflexão coletiva acerca dos projetos de gestão pública para as cidades e sociedades; a capacidade de continuar fomentando desenvolvimento de diferentes segmentos de atividades econômicas na crise que começa a se delinear; das transformações que se desenham no horizonte; e do papel de cada cidadão na construção diária de novas possibilidades de um futuro plural, equânime, sustentável. O clima desfavorável não afastou, nesse primeiro momento, citadinos residentes e turistas da área da Lyon Patrimônio Mundial da Humanidade e de seus engajamentos sociais!
Referências
FESTIVAL LUMIÈRE. Programme. Disponível em: <http://www.festival-lumiere.org/en/>. Acesso em: 20 sept 2020.
POLLUTEC – Le Salon. Disponível em <https://www.pollutec.com>. Acesso em: 12 oct 2020.
Tour de France à Lyon. Disponível em: https://actu.fr/auvergne-rhone-alpes/lyon_69123/tour-de-france-a-lyon-tous-les-horaires-pour-voir-les-coureurs-et-la-caravane-dans-le-departement_36067918.html>. Acesso em: 11 sept 2020.
TOUR DE FRANCE. Parcours. Disponível em: <https://www.letour.fr/fr/actus#culture-tour>. Acesso em: 09 sept 2020.